Os muros de Berlim, as cataratas do Iguaçu e as fronteiras de todos nós
…
Há dor na vida. Há dores que são mais fortes, outras menos, porém todas incomodam e nos mobilizam. Existe um lado da dor que impede a vida. A dor é egoísta, narcisista. Ela atrai todas as atenções para si mesma. Uma dor no estômago nos faz sentir que nosso corpo é formado apenas de estômago. Assim como numa dor de cabeça, o corpo parece se resumir à cabeça. A dor nos leva a suspender outras áreas da vida de modo que a nossa atenção fica totalmente voltada para ela.
Winnicott, em seu livro chamado “Tudo começa em casa”, constrói uma bela metáfora ao dizer que existem muros de Berlim dentro de cada um de nós. Esses muros seriam as zonas de conflito, as fronteiras que separam um território do outro. As áreas fronteiriças de um país normalmente são conflituosas, pois delimitam onde um espaço começa e o outro termina. E quando o assunto é respeito aos limites, o ser humano parece enterrar anos de evolução de sua espécie.
No nosso mundo interno existem áreas que vivem em guerra com territórios vizinhos. Nesses momentos é preciso reconhecer e olhar para o conflito sem esquecer que existem outras áreas que não estão em guerra. Winnicott pontua que nos espaços que se distanciam das fronteiras reside a potencialidade para a criatividade, para o lúdico e para a elaboração.
Arrisco-me a dizer que nessas áreas longínquas encontraremos inspiração para vencer a dor que a guerra nos impõe. São espaços de paz, tranquilidade e de transformação da nossa visão. O mesmo olhar que antes estava focado na dor do conflito, poderá se tornar panorâmico. Enxergaremos mais, não por utilizar lentes melhores, pois os olhos são os mesmos, mas por estarmos a uma certa distância da zona de conflito.
Fenômeno parecido pode ser observado por um turista que visite as cataratas do Iguaçu sob dois pontos de vista: o lado argentino e o lado brasileiro. As cataratas estão localizadas na fronteira entre Brasil e Argentina. No lado argentino, é possível ver as cataratas bem de perto, contemplá-las de cima e quase tocá-las. Já no lado brasileiro, a visão é panorâmica, mas as quedas são as mesmas.
Nos dois lados é possível ver as cataratas, o que muda é a nossa distância em relação a elas. Enxergar o mesmo fenômeno com uma certa distância nos dá a sensação de participarmos dele, sem nos confundirmos com ele. O lado argentino das cataratas nos coloca tão próximos a elas que não conseguimos calcular a sua grandeza. Já o lado brasileiro, ao proporcionar uma experiência mais ampla das cataratas nos coloca em contato com a sua imensidão, imponência e onipotência. Sendo que, ao mesmo tempo que somos participantes desse espetáculo natural, é possível, por causa da distância, estar no lugar de espectador e fotografar toda a dimensão das cachoeiras gigantes.
Sendo assim, é preciso se distanciar da área de conflito, no entanto, é necessário também que permaneçamos com os olhos sobre ela. Isso equivale a dizer que precisamos olhar para dor, porém com uma certa distância para que não nos confundamos com ela e assim possamos ocupar o espaço que se afasta da zona de conflito, pois é nessa terra distante que poderemos desfrutar de momentos de paz e criatividade. E quem sabe, assim como um turista que visita o lado brasileiro das cataratas, também é possível fazer belas fotografias da nossa área de guerra. Pois, ocupar o espaço da paz e do lúdico não é negar a dor, mas se afastar dela a fim de que ela seja fonte de inspiração.
Afinal, é bem verdade que há dor na vida, mas não podemos negar que também existe vida na dor.
:.
Lívia Batista Pereira Larranhaga é psicóloga CRP: 08/13426
:…
Texto extraído do JPF edicação 24. Escreva pra gente! Mais informações em: https://institutopsicologiaemfoco.com.br/2019/10/21/escreva-pra-gente-2/