O “FREUD” DA NETFLIX E A PSICANÁLISE COMO FICÇÃO
por Vinícius Romagnolli Rodrigues Gomes
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“Nossos netos se espantarão com as crenças ingênuas de seus pais em coisas tão ridículas e inverossímeis. Não saberão jamais o que foi, outrora, a noite, o medo do misterioso, o medo do sobrenatural” (Guy de Maupassant)
Introdução
Recentemente o anúncio da chegada da série “Freud” (Alemanha, 2020) na Netflix causou burburinho. Confesso que também estava entre os ansiosos para assistir, afinal já fazia um tempo que não via algo novo sobre Freud na televisão. A divulgação da série prometia trazer o pai da psicanálise auxiliando a desvendar uma série de assassinatos macabros e enigmáticos na Viena do fim do século XIX. A sinopse já sinalizava que se trataria de uma ficção e não de um documentário, no entanto, a série causou uma forte repercussão negativa entre estudantes de psicanálise e psicanalistas que ao assistirem aos oito episódios da série (mas não foram poucos os que não se deram a esse trabalho e pararam logo após o primeiro) denunciaram a maneira como o personagem de Freud é retratado.
Psicanálise e ficção
De saída me chamou a atenção as críticas em relação à ficção da série, afinal, com a psicanálise aprendi que somos seres fictícios (Borges também falou isso em sua obra); o próprio Freud em sua juventude tinha enorme apreço pela mitologia grega de Sófocles, pela Ilíada e Odisseia de Homero, por Hamlet de Shakespeare e pelo Dom Quixote de Cervantes com suas inter-relações entre fantasia e realidade, entre razão e des-razão. Em seu Dicionário amoroso, Roudinesco (2019) aponta que a dimensão da fantasia representa na psicanálise uma realidade deformada, remetendo justamente a ficção, fantasma, espectro e alucinação; fantasia é a realidade psíquica e não o equivalente a mentira, mas antes uma forma simbólica e alegórica de representar algo para a pessoa. A psicanálise está amplamente atrelada a este universo simbólico, mitológico e literário, sendo que Noemi Kon (2003) chega a apontar para a estreita relação entre a psicanálise e a literatura fantástica de autores do século XIX como Edgar Allan Poe, Guy de Maupassant, E.T.Hoffman e Machado de Assis, tendo ela transformado o mistério da obra destes autores em um enigma passível de ser decifrado. A virada para o século XX assistiu, no entanto, ao incremento do ideal positivista e iluminista de ciência e ao desencantamento do mundo, como denunciou Max Weber; tudo isso concorreu para o apagamento da dimensão trágica e conflitiva da existência, e fez com que o discurso do homem comportamental e da neurociência ganhassem cada vez mais força, ambos propagando “a morte da psicanálise e do sujeito do inconsciente”.
As críticas à maneira como Freud foi retratado
O que escutei daqueles que assistiram a série, grosso modo, é que Freud foi representado como um charlatão envolto em misticismo e viciado em cocaína. Aqui podemos contemporizar que uma figura complexa e multifacetada como Freud dificilmente seria retratada de modo suficiente numa série que não se propõe a fazê-lo, no entanto, para quem não conhece minimamente a psicanálise, penso que essa maneira apressada pode concorrer para reforçar estereótipos e lugares comum sobre a prática psicanalítica e seu fundador. Por outro lado, pode também instigar um desejo de pesquisa para checar tais fontes. Escutei de um aluno meu, por exemplo, o desejo de ler biografias de Freud. De saída podemos indicar algumas: a biografia oficial de Ernest Jones, a canônica biografia de Peter Gay e a mais recente e arejada de Elizabeth Roudinesco são ótimas e confiáveis fontes para fazer um contraponto àquilo que a série mostra.
Cabe lembrar que mesmo diante da versão “apressada” de Freud, a série mostra as brechas para questionamentos sobre a índole do autor ou sobre a eficácia da psicanálise que existiam de fato na época e que nada nos trazem de novo, afinal ambos já foram alvos de muitos detratores e críticos chegando ao ponto de serem queimados pela juventude hitlerista em 1933 por “desagregar o espírito e a alma humana”. No plano intelectual a psicanálise sofreu duras objeções de Karl Kraus, J.P-Vernant, Karl Popper e George Steiner, para citar apenas alguns pesos-pesados do pensamento que direcionaram críticas bem fundamentadas e menos rasas do que estas que supostamente vem da série. Digo supostamente, pois não creio que a série tenha deliberadamente visado desconstruir a psicanálise e a imagem do “totem Freud”, mas sim partir dela e talvez da maneira como ela era vista (e ainda é vista por muitos), a saber: como algo místico. Aqui cabe outra ressalva, um colega psicanalista bem lembrou que a série aborda a década de 1880 na vida de Freud, ou seja, um período pré-psicanalítico, no qual Freud está às voltas com muitas dúvidas e questionamentos sobre o método de tratamento para os transtornos mentais. O termo psicanálise será cunhado por Freud apenas em 1896 para designar seu método de tratamento pela fala oriundo do processo catártico de Josef Breuer (que aparece na série).
Psicanálise entre luzes e sombras
Mas voltemos para a questão do suposto misticismo da série. Aprendi, com minha prima Daniela, que a palavra “místico” etimologicamente vem de muein que significa “lábios fechados”, “o que não cabe em palavras” e que só é compreendido quando experimentado, não sendo, portanto, algo racional. A psicanálise tal como proposta por Freud, visava abrir esses lábios fechados e silenciados. A loucura, a possessão, o avanço do sobrenatural deveriam ser capturados pelo discurso racional, ganhando inteligibilidade e certo controle. O lado místico da série fez com que alguns dissessem em tom de ironia que Freud mais parecia o Sherlock Holmes, personagem de Arthur Conan Doyle; quanto a isso não vejo problemas, aliás o historiador Carlo Ginzburg faz exatamente essa aproximação em seu livro “Mitos, emblemas, sinais” ao dizer que ambos, Freud e Sherlock, lançam mão do método indiciário, ou seja, da busca pelos indícios e pelo pormenor revelador que não se apresenta claramente. Tomado nesse sentido, podemos pensar como a psicanálise tem seu interesse investigativo voltado para a porção irracional, para o noturno, o sonho e o impulso que nos habita e que sempre nos escapa, sendo impossível de se esgotar, pois o inconsciente é imorredouro.
Freud era um iluminista, um cientista que apostava suas fichas na racionalidade, mas que também era amplamente influenciado pelo romantismo alemão (em especial de Goethe) e se deparou com a imensidão do inconsciente, os limites da razão e da linguagem. O inconsciente freudiano acolhe o antigo “maravilhoso” e “misterioso” próprios do universo fantástico tão retratado na literatura e mitologia. Por isso nos dizeres de Inês Loureiro, Freud era um “iluminista sombrio”, uma expressão contraditória, não? A própria noção que Freud cunhou do humano é a de um ser contraditório e em constante conflito. Se serve de alento, Mário Quintana pode nos consolar ao dizer que “quem nunca se contradiz, deve estar mentindo”. O próprio Freud disse em carta a Romaind Rolland que trabalhou ao longo de sua vida para desfazer algumas de suas ilusões e das ilusões da humanidade, Thomas Mann aproxima essa postura freudiana de um aforismo de Nietzsche que diz “faça a ilusão desaparecer”! Eis o intento malogrado da psicanálise, pois por mais que nos esforcemos, não podemos viver sem um pouco de ilusão, por não suportarmos tanta realidade.
A linguagem esquecida?
Mas voltemos nossa atenção à série; a despeito das críticas, vejo nela um resgate dessa linguagem esquecida daquilo que temos de mais atávico, visceral, pulsional; fantasias, sonhos, medos, desejos proibidos, todos ganham expressão na série que ademais é uma oportunidade para falar de Freud e de psicanálise. Um exemplo disso pode ser tirado da própria Netflix, cuja também polêmica e criticada série “13 Reasons Why” que aborda o suicídio, levou à época a um aumento de mais de 400% nas ligações e procuras pelo CVV (Centro de Valorização da Vida). É inegável, portanto, o alcance desse serviço de streaming. Assim como é inegável que Freud, uma das figuras mais relevantes do século XX, teve seus conceitos muito difundidos, circulando por aí sem o devido rigor. Sabemos que em sua época, pessoas do mundo todo queriam conhecê-lo; Salvador Dalí, Marie-Bonaparte, Einstein, Thomas Mann, Stefan Zweig, Arthur Schnitzler (demonstrado na série), entre outros trocaram correspondências com ele. Freud se tornou pop, faz parte da cultura, e isso tem suas consequências.
Se na atualidade temos uma ampla gama de analistas e de grupos sérios de pesquisa que se dedicam a fazer avançar a psicanálise, também assistimos a produções de caráter duvidoso questionarem Freud e seu legado. Do possível caso extraconjugal com sua cunhada Minna Bernays, passando pelo uso desmedido da cocaína ou o modo como atuava na clínica, muitos são os ataques que Freud recebe mais de 80 anos após sua morte. A meu ver, isso mostra algo que a própria série suscita; como é impossível ser indiferente a Freud e à sua psicanálise; mesmo em face de tanta resistência o vigor de seu pensamento e a relevância de sua obra insistem em se fazer presentes. Freud é atemporal, se tornou um clássico porque nunca termina de dizer o que tinha a dizer, talvez por conta disso, vira e mexe nos deparemos com novas produções acerca de seu universo. Cabe a nós, psicanalistas e interessados em psicanálise estarmos atentos a estas produções e aproveitarmos a oportunidade que elas encerram para falar da “peste” (expressão utilizada por Freud em alusão à psicanálise em sua visita aos EUA em 1909 para uma série de conferências) que, apesar de ganhar novas roupagens e ares de ficção no século XXI, não tem nada de efetivamente novo. Quando questionado sobre o que haveria de mais moderno em psicanálise hoje, Christian Dunker responde categoricamente: Freud! Freud está vivo e, pelas discussões que a série homônima produziu, me parece que conserva todo o seu vigor. Essa história ainda vai dar o que falar…
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Psicanalista, Psicólogo e Historiador. Mestre e Doutorando em Psicologia. Professor universitário (PUC-PR). Fundador do Instituto Psicologia em Foco.