Há lugar para o íntimo na Saúde Mental?
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por Fúlvio César Casemiro
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No dia 18 de Maio comemoramos 32 anos da Reforma Psiquiátrica no Brasil, movimento que questionou a hegemonia do modelo hospitalocêntrico no tratamento da chamada “doença mental”. Contamos hoje com uma Política Nacional de Saúde Mental, cuja Rede de Atenção Psicossocial (CAPS, Residências Terapêuticas, leitos em hospitais gerais entre outros) trouxe um avanço sem precedentes nos tratamentos. Indivíduos antes estigmatizados como loucos, perigosos, incapazes e cujos direitos e deveres eram anulados junto à sua subjetividade, foram reinseridos na sociedade com protagonismo e poder de contratualidade.A Reforma é, contudo, um movimento de luta constante, vide Nota Técnica do Ministério da Saúde 11/2019, que incentiva os hospitais psiquiátricos, compra de equipamentos de eletrochoque e a alteração nas Políticas Nacionais sobre Drogas que autoriza a internação involuntária.
A Reforma apregoa um resgate da subjetividade daquele que sofre psiquicamente e, por isso, coloco em discussão aqui um risco que incorremos nós profissionais: mesmo dentro dos ideais da Reforma podemos, paradoxalmente, desconsiderar aquilo que é do íntimo do usuário, seu particular. A intimidade da qual falo é aquilo que anima a vida psíquica do usuário, os seus pensamentos, fantasias, medos, angústias, aquilo que muitas vezes ele falaria apenas, como se diz, no tête-àtête. Se soa estranho dizer que justamente em serviços de saúde mental a intimidade pode por vezes ser deixada de lado, na prática é o comum.
A própria história da Reforma no Brasil pode ter colaborado com isso. Os primeiros anos do movimento foram marcados pela ênfase na dimensão política, em recuperar os direitos perdidos dos usuários, retirá-los de uma realidade de exclusão social e política (Rinaldi, 2006). A dimensão clínica, que aborda o subjetivo de forma mais detida, contudo, ficou em segundo plano, sob estigma de que escutar o sujeito em sua singularidade, num atendimento individual, poderia ir contra os ideais da Reforma, pois supostamente faria oposição àquilo que é idealizado para a Saúde Pública como coletivo, grupal, social.Quando se acentua ou se toma de forma exclusiva o discurso de cidadania, de reabilitação psicossocial, é quando a instituição e os técnicos podem assumir uma posição de supor um bem para o usuário. Afinal, será que nos questionamos o que, de fato, entendemos por reabilitar? E reabilitar o quê, para o interesse de quem? Escutamos o usuário como agente participante desse processo? O discurso da reabilitação, tão caro aos serviços substitutivos, corre, assim, o risco de significar algo educativo, normalizador, a partir de um saber prévio que pode assumir um caráter superegóico quando associado aos ideais de bem e de cura. Há nesses casos, como propõe Lacan (1992), o chamado discurso do mestre, podendo o técnico ou a própria instituição ocupar esse lugar de mestria conduzindo o indivíduo no que se supõe o melhor a partir de um modelo pré-estabelecido e um saber a priori e universal.
Freud já havia condenado qualquer ambição de educar ou de curar, de querer o bem do paciente tendo como base a nós próprios (como um espelho), já que isso torna impossível o aparecimento do desejo inconsciente, do íntimo, que é o que faz a sua diferença em relação ao outro (Rinaldi, 2006).
Há, também, a perda do íntimo quando impera o ideal de produtividade, em atender-se mais por menos tempo, para que as verbas públicas sejam repassadas e os serviços continuem vigentes, e que impõe aos técnicos montarem grupos volumosos sempre em detrimento dos atendimentos individuais. Ou quando é proposto atendimentos em grupo a usuários que precisam ser escutados individualmente: aqueles que padecem da chamada clínica do real, que se mutilam nos braços, nas pernas,abrindo pela navalha alguma forma de borda para uma angústia insuportável de conter por outra via, já que o simbólico não lhe está acessível para esta função naquele momento; àqueles com ideação suicida; aos psicóticos quando no momento em que precisam se reorganizar numa nova metáfora delirante.
E o que pode nos dizer a psicanálise frente a essa rejeição do íntimo na Saúde Mental? Penso que a noção de Sujeito do inconsciente (distinto do sujeito da acepção social) trata do que chamo aqui de íntimo. Efeito da linguagem, o Sujeito se revela justamente por essa mesma via, nos lapsos, atos falhos, tropeços, não ditos, sintomas. É apenas aí, nessas brechas, de forma não racional, que aparece o desejo inconsciente, a verdade do Sujeito. Até mesmo a dimensão do gozo, da satisfação obtida pelo sofrimento, só será passível de apreensão se permitimos a escuta de fenômenos que não circulam pela via do racional.
A escuta do íntimo, todavia, não precisa ficar restrito a um psicanalista. Afinal, uma equipe de saúde mental compõe uma diversidade, que pode ser capacitada e sensível a tais fenômenos. Num CAPS, por exemplo, traçasse junto ao usuário seu plano terapêutico singular, que potencialize sua condição de autonomia, de protagonismo na vida. Não é imprescindível, então, que o escutemos nessa dimensão de Sujeito? Como esperar que ele consiga ser protagonista se lhe conferirmos um serviço que oferece, por exemplo, um viés acentuadamente jurídico, social ou mesmo educativo ou normativo?
Para concluir – mas não encerrar – se o discurso que exclui o Sujeito é o do mestre, a Saúde Mental não se beneficiaria de um discurso oposto, que esvazie o saber prévio sobre o usuário em atendimento? Para Rinaldi (2006), o discurso do analista, tal como a ética da psicanálise, não se orienta pelo bem, mas pelo desejo, e se funda na aposta de que ali naquele que recebemos há um Sujeito que poderá emergir como resultado de um trabalho clínico, trabalho esse que deve ser sustentado dentro da instituição e não contra ela ou apesar dela, mas buscando transmitir algo desta dimensão do Sujeito, do seu íntimo, sem o qual o discurso da cidadania corre o risco de reproduzir o modelo tutelar e excludente.
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Fúlvio César Casemiro é Psicólogo (CRP 08/15146), especialista em Psicanálise Teoria e Clínica., mestre em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá(UEM), psicanalista em formação. Atua no CAPS-III (Centro de Atenção Psicossocial III) de Maringá e em consultório particular.