Do desamparo ao amor
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por Marco Correa Leite
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O desamparo humano, posição inicial que todos nós habitamos desde o momento de nosso nascimento, tende a ser visto pela psicanálise como uma forma de não-vínculo com o outro. O “antes” primordial de qualquer relação humana, como escreveu Freud em “Inibição, sintoma e angústia”.
Na sociedade contemporânea, o sujeito é recortado pelo discurso do Outro que ordena a todo momento que se goze, não importando como. O desamparo deixa de ser apenas estrutural e passa a ser reconhecido como uma das formas de sofrimento e padecimento muito comum nos dias atuais.
Nomeado por vezes como Síndrome do Pânico, o desamparo estrutural deixa de ser visto como importante cena primitiva, na qual a partir deste estado, o sujeito se lançaria ao outro na expectativa de produzir um laço que lhe sustente, que lhe dê a condição de humano. O desamparo passa ser visto como algo da ordem do evitável, do medicalizável, do sofrimento que necessita ser calado, impondo ao sujeito o vínculo com um outro pela via do medicamento, um dos fetiches contemporâneos.
Percorrendo a escrita freudiana, o livro “Ainda há amor?” trabalha a entrada do ser humano no vínculo com o outro a partir do desamparo do momento do nascimento. No entanto, compreendendo que o ser humano é atravessado pelo discurso social, o livro traz uma visão sobre a constituição psíquica na contemporaneidade, tempo sabidamente atravessado pelo espetáculo e pelo consumismo.
Ainda há amor? É uma pergunta a ser feita a todos. Estamos mesmo nos relacionando com os outros a partir de vínculos de amor, ou partindo do pressuposto que o outro, é tão somente mais uma mercadoria disponível para consumo?
O livro não pretende responder a esta questão, mas antes, problematizá-la para que o próprio leitor se perceba dentro da engrenagem capitalista, como uma de suas peças ao se produzir também como mercadoria para que seja comprado, visto, utilizado pelo outro. Por exemplo, na entrada do indivíduo no mercado de trabalho, ganha a vaga quem se vender melhor para ser explorado pelo patrão. Ou no mercado das relações afetivas, ganha quem se destituir ao máximo de si, assujeitando-se ao outro. Ganha o mais alienado de si mesmo, o que se vender melhor.
O estranho é que, justamente por estar nessa posição de objeto para consumo, é que pode aparecer o desamparo humano como condição para pensar sobre si, para engajar-se em uma análise por exemplo. E será ali, na análise, que o analista pela via da transferência poderá intervir resgatando o que ainda há de amor no sujeito e possibilitando que este laço com o outro se produza.
O que estava direcionado narcisicamente ao Eu, na tentativade ser um objeto fálico para o consumo, uma vez em análise, o sujeito tem a possibilidade de enveredar pelo campo do que lhe falta, não mais sofrendo pela impossibilidade de ser o que o Outro deseja, mas antes, sendo aquilo que ele pode ser para si mesmo construindo as medidas do que lhe é possível.
Esta mudança possibilitada pela relação transferencial só é possível pela via do amor. Amar – como diria Lacan em seu seminário 8 – é transmitir a castração, ou seja, permitir-se ser faltante, permitir-se não ser todo. Diferentemente do proposto pela cultura do consumismo, na qual haveria uma satisfação total possível pela via do consumo de uma mercadoria, o amor porta algo de insaciável, algo de pleno que só pode ser atingido se este amor de fato for capaz de suportar a falta, ou em outras palavras, o próprio desamparo.
Neste ponto, amor, desamparo, falta, estamos falando de libido. A libido encontra sua satisfação não no consumo do objeto, mas na manutenção da presença deste. Em outras palavras, como afirma Freud, “É preciso amar para não adoecer”. E só há amor, ali onde a dimensão da falta é sustentável, pois sem esta dimensão, retornamos à tentativa de completude, de plenitude, em que todo o resto seria apenas mais um objeto para o consumo, em suma,retornamos ao desamparo humano, pois não há humano sem a dimensão do outro.
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Marco Correa Leite é Psicólogo (CRP 08/17139), analista em Londrina, vice-diretor da Associação Livre Psicanálise em Londrina e coordenador e professor da especialização em Psicanálise Clínica da UNIFIL.