Reclusão e Angústia: Poste depois de ler.
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por Daniel Ribeiro Branco
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“Tenho medo do futuro… Tenho medo de que isto tudo seja apenas um acidente”.
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Assim começava uma série de publicações realizadas pelo ator e compositor Donald Glover em 2013, na rede social Instagram. Contrariando o padrão das redes, as postagens chamaram a atenção de fãs, mídia e colegas do ator; confusos, preocupados, entenderam como uma espécie de pedido de socorro, um grito de desespero. Esta história fica mais interessante com um salto 5 anos à frente no tempo. Glover, então já consagrado em Hollywood, tanto no filme Solo quanto na série Atlanta, lança em 2018 a impactante música This is America, onde demonstra sua capacidade de criar vários níveis de crítica à indústria cultural, utilizando sua própria máquina para propagar sua arte, infectando silenciosamente o mundo com uma poderosa mensagem crítica sobre o racismo e com uma ressoante demonstração do próprio ruído produzido pela mídia, para encobrir o sofrimento daqueles que têm seus corpos esgotados e objetificados pelos diversos ismos que permeiam as relações sociais.
Voltando a 2013, é possível que na ocasião o artista estivesse expressando seu real sentimento; porém, o efeito de suas palavras foi muito além de seu sentido direto; ao falar de medo e tristeza usando sua mídia pessoal, realizou o mesmo feito que mais tarde conseguiu com This is America; já que de dentro da própria rede questiona a realidade daquilo que as pessoas postam em suas mídias sociais. Em ato, demonstrando sua capacidade de elaboração em diversos níveis, conseguiu desferir um golpe do interior do próprio monstro, fazendo com que suas palavras fossem apenas o veículo para o verdadeiro soco no estômago, este sim, causado pelo meio que Glover utilizou para expressar sua mensagem.
A mensagem em si, era apenas uma isca, assim como a dança em This is America tem a função de atrair o olhar e demonstrar como a mídia esconde o que se passa no fundo da imagem; chama a atenção para a verdadeira crítica que está no sentimento de ‘fora-de-lugar’, causado por suas palavras. Uma rede conhecida por fotos de momentos felizes, viagens, festas e paisagens não comporta questionamentos sobre a vida, não suporta nada que fuja à imagem fantasiosa de felicidade e rendimento absolutos que, ali, são a norma. É desagregador demais para a imagem de perfeição, que todos oferecem em suas timelines. O feito de Glover alcançava, com isto, o efeito de uma verdadeira intervenção artística, como as definiu o filósofo alemão Christoph Turcke, ou seja, aquela que escapa à indústria cultural ao utilizar seu próprio maquinário mercadológico para criticá-la.
Infelizmente, as ações como as de Glover são um ponto fora da curva que não deixam de ter grande importância para apontar a necessidade de repensarmos a relação que estamos construindo com estas redes. Como aponta Christian Dunker, em seu livro Reinvenção da Intimidade, as mídias trouxeram uma espécie de sobreposição entre o público e o privado, um emaranhamento entre o íntimo e o compartilhado, na medida em que o indivíduo dá-se a ver; mostra a todo momento em seu canal pessoal o que, antes, era reservado a permanecer confinado ao lar, ou apenas conhecido por aqueles fisicamente mais próximos.
Mas, engana-se aquele que pensa que se pode mostrar tudo. Nas redes, a liberdade de expressão vai até o limite de sua própria constituição, pois cada um exibe uma parcela de sua intimidade milimetricamente calculada para conquistar o outro, pensada para gerar engajamento e otimizar a resposta do algoritmo. Calcula, anseia e sofre. Sofre na busca por um ideal de “intimidade” padronizado, sofre no medo de estar sempre deixando de ver e participar de algo (FOMO). A angústia do questionamento, como escancarou Donald Glover, não tem lugar neste álbum de intimidades fabricadas, de realidades filtradas; neste discurso altamente mediado, exibir o sofrimento representaria um déficit moral, uma falta que dá testemunho de um indivíduo incapaz de acompanhar uma sociedade, por sua vez, cada vez mais pautada pela exigência de produtividade. É a árida realidade que deve manter-se sob o véu da Matrix (1999).
Antes que se pense que a única saída seria isolar-se Na Natureza Selvagem (2007), vale lembrar que, como toda ferramenta, as redes podem ser utilizadas para construir ou destruir; formas diferentes de uso geram resultados distintos. É inegável que elas possuem alguma funcionalidade principalmente nestes dias de isolamento social, causado pela pandemia do COVID-19, quando os corpos precisam estar fisicamente distantes, deixando o virtual como saída segura. Neste contexto, as redes sociais têm sido o meio de manter algum contato social com amigos e familiares, de comunicação de forma geral e até mesmo criar redes de discussão política ou de combate às Fake News sem, com isto, colocar a vida de muitos em risco. Entretanto, levantamentos sobre saúde mental apontam para altos níveis de sofrimento subjetivo como um conhecido efeito colateral, o que aponta para a necessidade de discutir seriamente o uso que tem sido feito delas, e como estas mídias usam o social como forma de usar o indivíduo como produto extremamente lucrativo para suas redes de anunciantes.
Este aprisionamento subjetivo nos leva a crer que a estrutura de funcionamento dessas redes faz eco com estruturas do próprio sujeito, algo que poderia ser resumido como um tipo de aplicativo atávico, que em nós, seres atravessados pela linguagem, calcula incessantemente o que devemos mostrar ao outro para sermos amados; o que, neste caso, as mídias sociais habilmente traduziram em likes, comentários e republicações. Assim, a mídia pessoal de cada um captura o desejo de fazer laço com o outro, de ser valorizado, mesmo que para isto seja necessário criar uma versão fantástica de cada um, uma versão social e midiática de si mesmo.
Isto não é um pressuposto único das redes, pois é claro que, sendo um ser social, o humano traz em sua estrutura esta tendência a fazer laços, a procurar formas de ser amado pelo outro; mesmo que para isto precise tentar anular seus próprios desejos; esta é, em linhas gerais, a novela de todo neurótico. Mas, quando há um dispositivo que faz um encaixe quase perfeito com esta estrutura subjacente, o resultado é uma edição, repleta de cortes, dos melhores momentos do dia de cada um, sejam espontâneos ou fabricados, apresentados constantemente em um carrossel de atividades, que vendem o melhor “way of life” ao estilo das mídias: Seja você mesmo, sendo igual a todos. Nesta edição, com cortes cirúrgicos do diretor, são exibidas práticas de yoga, trabalho, meditação, treinos, leituras, festas, escritos influenciadores e motivacionais e… Cansa só de escrever!
Cansa, mais ainda, tentar acompanhar, replicar e acreditar nesta vida paralela das redes, que se tornou um simulacro de filme editado para ser uma versão feliz, inteligente e autogerida da vida de cada um. Cansa, como diz o filósofo Byung-Chul Han (A Sociedade do Cansaço), de ser este empresário de si mesmo; um autogestor constantemente cobrando rendimento otimizado, no trabalho, na vida social, nos relacionamentos românticos, até mesmo no descanso durante o isolamento social. Cansa e gera ansiedade que, como mais um produto a ser eliminado pela indústria do bem-estar, também entra no ciclo de exigências: o que você está fazendo que não está trabalhando para controlar esta ansiedade?! Como não consegue dormir 8 horas ininterruptas diariamente?! É um looping eterno de uma mente sem descanso (Michel Gondry – 2004).
Esta angústia por rendimento e o medo constante de estar perdendo algo muito importante não são novidades. Elas estavam aí; um vírus ideológico que vem se reproduzindo há pelo menos meio século, um vírus de sintomas brandos, que utiliza o maquinário do capitalismo selvagem para disseminar-se entre o homem, o primata menos sustentável (Titãs – 1985).
A novidade que o isolamento social trouxe é que estas falácias não colam mais, pois a partir do momento que as limitações passaram a ser de todos, a partir do momento que outro vírus – desta vez real – colocou todos em um jogo que obriga a avaliar as ações mais cotidianas, a dúvida começa a surgir, o preço do tempo começa a ser levado em consideração e os padrões anteriores de rendimento são desmontados. Perdem a cola, já que o vírus imaginário do passado insistia em defender que não é possível parar, que parar seria o fracasso de nossa sociedade, enquanto o vírus real mostrou à força que é possível parar, que a locomotiva da produção não é um moto perpetuo. É possível parar e observar que a natureza responde imediatamente a isto, dando sinais de seu alívio. É preciso parar, mesmo com todas as dúvidas que isto nos traz; pois sem todo o ruído, sem todo o barulho do rendimento a todo custo, há que se estar com os filhos, que se defrontar com laços ignorados, que pensar nos que estavam à margem da produção capitalista, já que a continuidade depende de manter viva ainda alguma coesão social, há luto pelo que irá ser perdido, seja econômica ou socialmente. Mas, além de tudo isto, há que se avaliar para onde iremos voltar!
Bruno Latour, um filósofo contemporâneo, lembra que a crise do Corona vírus é apenas uma prévia da crise global que está, há décadas, sendo construída pela degradação ambiental. Talvez o normal, a norma anterior, não retorne mais, cabendo a todos delimitar qual será a nova norma; pois, quando o real bate à porta, ou foge-se para a negação delirante, ou enfrenta-se com coragem o vírus que já estava aí e que, com muito esforço, vinha sendo ignorado, mas que dava notícias de sua existência no alto nível de sofrimento, no mal estar e desespero que se apresenta diariamente na sintomática exposição de uma intimidade fantasiosa nas redes sociais; fantasia que começa a cair por conta de um rasgo na realidade pandêmica de nossos dias, forçando o questionamento sobre o que cada um tem buscado naquela, velha, fantasia. Uma parada forçada que nos dá a oportunidade de questionar onde estamos e para onde queremos ir, sem garantias de sucesso, mas uma aposta indispensável e uma pergunta ainda em aberto, por isto, lembre-se, se encontrar a sua resposta, não se esqueça de postar.
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Daniel Ribeiro Branco é psicólogo, psicanalista, mestre em Psicologia e doutorando em Gestão Ambiental desenvolvendo pesquisa com Análise de Discurso