por Daniela Ravelli Cabrini
“A vida é curta. A arte muito longa.” (Goethe)
A relação complexa do ser humano com a Arte tem se transformado ao longo dos séculos porque o regime de valor artístico está ligado à lente estética atribuída à cada época e local. Os períodos Clássicos e Românticos reproduziam a Arte formalista, a qual priorizava uma estética realista e objetiva das obras, refletindo a sociedade conservadora e hierárquica da época. A produção artística estava sob domínio da elite burguesa. Já, o contexto Pós-Segunda Guerra Mundial reflete uma corrente artística contra a estética opressora, esterilizante e autoritária do formalismo: a Arte Contemporânea. Ela visa estimular a sensibilidade de quem a vê, e prioriza a expressão livre dos sentidos de quem a faz, portanto, pode estar presente em diversas culturas – onde há ser humano, há arte. Estes conceitos influenciam o desenvolvimento cognitivo e afetivo do indivíduo: um processo terapêutico para o sujeito artístico, a fim de torná-lo ativo culturalmente.
A literatura indica experiências de atividades artísticas realizadas no campo da saúde mental. Dentre os percursores, destaca-se a psiquiatra Nise da Silveira. De acordo com Dias (2003), ela formou-se médica em 1926, sendo a única mulher da turma, e aproximou-se da psiquiatria trabalhando no Hospital Psiquiátrico de Engenho de Dentro. Em um contexto em que práticas violentas eram usadas para o tratamento da doença mental, ela introduziu um novo método: uso da expressão artística no tratamento, formando o ateliê. Este método revolucionário questionou a psiquiatria tradicional ao valorizar a capacidade criativa da pessoa em sofrimento psíquico. Assim, foi criado o Museu de Imagens do Inconsciente, para a exposição das produções artísticas realizadas nos ateliês de pintura e modelagem (DIAS, 2003).
Concomitantemente, Osório César também adotava a Arte como parte do tratamento dos alienados no Hospital de Juqueri, onde assumiu o cargo da psiquiatria em 1925 (ANDRIOLO, 2003). Questionando o tratamento com os alienados, inicia um trabalho de Artes e Psicanálise, para tratar dos pacientes. Teve grande repercussão das obras ali produzidas, que foram expostas internacionalmente (ANDRIOLO, 2003). Seus estudos revelaram algumas semelhanças entre doenças mentais e o tipo de Arte produzida, classificando-as esteticamente: primitiva; arcaica; clássica ou acadêmica e vanguarda.
Nise da Silveira e Osório Cezar estimularam a autonomia nos pacientes, desconstruindo o conceito de doença mental da época e influenciando ativamente na luta antimanicomial. Eles traziam uma valorização estética, revelando um novo papel social para os institucionalizados.
Hoje em dia, o percussor de Nise da Silveira no Hospital Dom Pedro II é Vitor Pordeus. Psiquiatra e ator foi também coordenador do Núcleo de Cultura, Ciência e Saúde do Rio de Janeiro (2009). Em 2012, idealizou o projeto “Hotel da Loucura”: ocupação artística situada no hospital psiquiátrico à disposição de hospedagens, a fim de gerar reflexão sobre o estigma da doença mental. Trata-se de uma politica publica a qual insere práticas alternativas para o tratamento da doença psíquica. Uma das atividades é o Teatro DyoNises em que os usuários, funcionários e visitantes são convidados a construir uma peça teatral e a participar de oficinas. Influenciadas por Goethe, Shakespeare, Spinoza e Bertolt Bretch, as peças são apresentadas em espaços públicos. Todos são tratados de forma igual, gerando autonomia nos usuários e estimulando a comunicação. Para Vitor, a criatividade gera saúde, e a vacina contra a loucura é o teatro. Em 2016, ele foi exonerado de sua função, levando o Hotel da Loucura ao fim.
A trajetória política da Arte no âmbito da Saúde Mental é essencial no processo de desinstitucionalização do doente mental, pois, além de contribuir terapeuticamente, emancipa o paciente de sua condição marginalizada. Contudo, percebe-se que a luta só começou.
Jamais apagou-se.
A chama não se apaga,
Arde poeira os anos.
Incinera as máscaras
E mostra os baluartes
Da democracia daquela época
Em sua verdadeira face
De cera derretida e atitudes retorcidas
A chama crepita
E continuará assim por muito
Cada vez mais forte,
Emanando nosso desejo de liberdade
1989
(Nilo Sérgio Fernandes, Ex-usuário do Hospital Engenho de Dentro (1970) / atual militante da luta antimanicomial)
Daniela Ravelli Cabrini é acadêmica de Psicologia do quarto ano da Universidade Estadual de Maringá.