Como podemos pensar nossa sociedade a partir do filósofo Michel Foucault
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por Juliana Hortelã Pedrone Valério
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Abordando a temática “Mal-estar e sintoma na atualidade”, reflexão norteadora do Psicologia em Foco em suas edições deste ano, ressaltamos a importância de se falar sobre o assunto, já que muitos discursos de áreas como a psiquiatria e psicologia abordam o assunto.
Para discorrer acerca deste tópico, estruturo uma linha de raciocínio baseada no pensamento de Michel Foucault. Filósofo por formação, o autor contribuiu e ainda contribui com seu pensamento para discussões em diversas áreas do conhecimento, uma delas é a análise de discurso. Esta teoria nasce na França, em meados dos anos 60, se desenvolvendo de acordo com o pensamento social e político daquela época, momento de fortes críticas ao pensamento estruturalista. A análise de discurso possui uma perspectiva interdisciplinar ao fundir áreas da Psicanálise e da Linguística, quando Lacan estreia com a releitura de Freud e Saussure. Deste modo a teoria se ancora na psicanálise freudiana com a inconsciência do sujeito; e da linguística saussuriana, com a língua.
Por tratar a questão de saber e poder, Michel Foucault nos ensina que a sociedade se organiza por meio de instituições, as quais visam garantir uma ordem social, mas, igualmente, afetam quem somos e regem nosso modo de viver. Será em torno da questão de como as instituições regulam a produção de saber-poder e como elas nos afetam e nos constituem enquanto sujeitos que abordaremos nosso olhar sobre o “Mal-estar na atualidade”.
Foucault nos traz a luz novas possibilidades de existência quando nos incita a questionar as verdades construídas na sociedade, seja no campo da justiça, do saber médico, das regras de conduta sexual etc. Para ele, a filosofia é um conhecimento que deve ser praticado e mostra que podemos viver de outras formas, diferente daquelas que nos são impostas. Com isso, o autor orienta que é necessário estudar a genealogia das coisas, que os objetos não nascem prontos e devemos questionar sempre para compreendê-los e tentar fazer diferente. A exemplo disso, podemos mencionar o sujeito louco, objeto estudado por Michel Foucault, quando nos mostra que a loucura não existia até um dado momento da história, mas que surge a partir de dadas condições de possibilidades e emergência em relações de saberes e poderes, advindas de diversos campos. A constituição da loucura ocasiona, por exemplo, o nascimento das clínicas para internamento desse sujeito.
Nessa ordem, cotidianamente, discursos são produzidos, embasados e constituídos por saberes de campos diversos, como o saber jurídico, econômico, médico etc. Esses campos, portanto, formam uma rede discursiva as quais constroem objetos/verdades e nos constituem enquanto sujeitos. Desse modo, os discursos produzem saberes numa relação de saber/poder que nos subjetivam e nos inserem em um funcionamento que atende uma espécie de tecnologia de gestão de sujeitos. Destarte, esse poder que Michel Foucault nos mostra não é aquele repressivo que nos atinge de forma vertical, mas, ocorre em uma forma horizontal em micro relações de poder – vale ressaltar que o filósofo não descarta as macros relações de poder, somente dá maior visibilidade para as relações de forma micro. Para ele, o poder é produtivo, porque produz saberes, permeia, induz ao prazer, produz discurso (FOUCAULT, 2004). Isto significa dizer que quando o poder é articulado suscita respostas, efeitos, reações, invenções possíveis, manifestação de embate, da resistência, confronto de relações de forças (CARVALHO; SILVA, 2016). Logo, é um poder visto no campo social em uma situação complexa, por isso é mais adequado falar em jogos de poder, em múltiplos campos de luta. O que quer dizer que diante do poder sempre haverá forças que se confrontam e se opõem.
Diante disso, podemos dizer que o poder nos constitui, afeta nosso pensamento, inscreve e incide sobre/em nosso corpo. Portanto, nosso papel é mostrar e se fazer entender como isso ocorre. Pensemos sobre a educação das mulheres para o matrimônio e para a maternidade. Isso foi construído, não é assim porque é. Todavia, é ensinado. Há sempre um poder agindo sobre os corpos, sobre as ações que produzem saberes, prazeres e, por fim, constrói verdades, estabelece padrões.
A exemplo das construções sociais, problematizamos o padrão de beleza atual para refletir como o poder incide sobre os corpos. Primeiramente, o ideal de corpos não é o mesmo, pois é instaurado, em cada momento da sociedade há uma espécie de modelos a seguir. Esse padrão é constituído/embasado por saberes de áreas como da saúde, quando se têm discursos médicos que definem o corpo magro como sinônimo de saudável e produtivo. Decorrem, também, discursos de áreas como da nutrição, da educação física, da fisioterapia e outros campos, que reiteram, acolhem e afirmam esse discurso como verdadeiro. É nesse emaranhado de discursos, produzidos em redes de saberes, que vão construir um verdadeiro de como deve ser o padrão de corpo de uma época.
Essas constatações são para refletir que somos constituídos, com uma certa inconsciência, por discursos de diversas instâncias que vão regular o modo que vivemos. Por isso, importa considerar que as reflexões apresentadas por Michel Foucault servem para entender que somos objetivados e subjetivados nas e pelas relações de poder e saber. A saber, objetivação é a forma com que os discursos produzem sujeitos como objetos, e a subjetivação é como nos enquadramos às objetivações sociais. Assim, entender esse processo de constituição dos sujeitos é um recurso para nos (des)subjetivar das práticas discursivas que tendem a nos constituir.
Nesse contexto, somos constituídos, prioritariamente, por discursos que atendem demandas do modelo econômico neoliberal, o qual visa constituir sujeitos cada vez mais úteis para atender demandas desse sistema. De modo geral, os sujeitos precisam ser produtivos, empreendedores de si, consumirem cada vez mais de forma a alimentar e fazer funcionar a sociedade neoliberal. Diante disso, a forma de exercício político do neoliberalismo na vida dos sujeitos se constrói em uma bipartição entre economia e sociedade, o que faz com que o domínio econômico sirva de modelo para o estilo de vida da sociedade. E é justamente nela que se deve intervir (SAMPAIO, 2019). Com isso, não temos um estado que intervém diretamente na economia, mas sim sobre nós, sujeitos desta economia, e, portanto, em nosso estilo de vida.
Entendemos, que essa coerção de poder exercida sobre os sujeitos a serem cada vez mais produtivos pode ser uma das problemáticas que acarretam o mal-estar social. Sobre isso, vale mencionar o episódio ocorrido na páscoa em concomitância a pandemia. Nele, pudemos observar uma corrida para garantir o presente de páscoa, lotando mercados, filas e filas no comércio que acarretaram aglomerações nas ruas, desatendendo as recomendações das instâncias de saúde sobre o distanciamento social. Sem contar que a data cristã celebra a ressurreição de Cristo, mas parece que se torna estritamente comercial quando prevalece o interesse econômico, e fica em segundo plano o sentido real que a páscoa tem para sujeitos que se inscrevem no campo religioso.
Nessa ocorrência, percebemos que houve uma certa flexibilidade em relação a abertura dos comércios na semana do feriado, o que nos leva a refletir sobre o exercício do poder agindo nas instâncias reguladoras para que houvesse tal flexibilização e mais pessoas circulando em espaços coletivos, mesmo em tempos de pandemia.
Destarte, analisando o episódio ocorrido no período de páscoa e as constatações acerca do padrão de beleza, intenta-se, com tais exemplificações, mostrar como ocorre a subjetivação dos sujeitos a determinadas práticas. É nessa averiguação que vemos o exercício do poder incidindo sobre os corpos, afetando pensamentos e práticas dos e nos sujeitos subjetivados a objetivações postas em práticas discursivas. Nisso, pudemos estabelecer tais práticas a esse “Mal-estar que vivemos na atualidade”.
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Juliana Hortelã Pedrone Valério é Doutoranda e Mestre em Letras/ Linguística – Linha de pesquisa Texto e Discurso da Universidade Estadual de Maringá. Bacharel em Secretariado Executivo Trilingue pela UNESPAR-FECEA – Faculdade de Ciências Econômicas de Apucarana (2007). Especialista em “Gestão Estratégica de Empresas” (2010), e “Docência no Ensino Superior”(2012), ambas pelo Instituto Paranaense de Ensino. Atualmente se dedica em pesquisas nas áreas de Estudos Linguísticos e Estudos do Secretariado Executivo. Trabalha especificamente desenvolvendo pesquisas em Análise do Discurso de linha francesa, utilizando essa teoria para contribuir nos estudos epistemológicos em Secretariado. É integrante dos grupos de estudos: Grupo de Estudo Foucaultianos GEF-UEM, e Grupo de Estudo em Secretariado Executivo Trilingue – GESET-UEM. Atuou como Professora Assistente colaboradora em 2012 na NESPAR-FECEA, e entre 2015-2018 na UEM, ambas no curso de Secretariado Executivo Trilingue.