COVID-19 e a fobofobia: é possível (con)viver com o medo?
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Por Vinícius Romagnolli Rodrigues Gomes
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Tenho medo de gente e de solidão
Tenho medo da vida e medo de morrer
Medo que dá medo do medo que dá
(Lenine/Julieta Venegas)
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Só falamos nisso, só pensamos nisso, histeria coletiva? Pânico? A COVID-19 já dava as caras no final de 2019 na China, mas parece que só dimensionamos seus perigos quando esta bateu à nossa porta. Em poucos dias a mídia passou a dedicar a maior parte de seu tempo a disseminar informações acerca da pandemia. Tal cenário me fez lembrar do sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017) que em sua obra Confiança e medo na cidade (2009) fala da noção de fobofobia: um medo que dá medo do medo que dá como nos versos de Lenine, fruto de um mundo em constante mudança, confuso, repleto de armadilhas e temores invisíveis, difíceis de localizar. Diante desse contexto, Bauman aponta que as ações que praticamos para nos salvar do medo acabam de modo paradoxal sendo uma fonte permanente dos temores. Ou alguém se sente de fato mais seguro isolado em sua casa e bombardeado com as notícias que nos invadem de todos os cantos?
Estamos diante de um medo avassalador que ameaça nos paralisar e enquanto psicanalista ouço muitos indagarem: como proceder? O que fazer diante daquilo que parecia impensável? Longe de querer estabelecer um manual comportamental de prescrições como um roteiro do que fazer, gostaria de problematizar questões que talvez nos possibilitem criar uma maior “imunidade psíquica” nesse tempo de crise. Vamos lá:
1) Não há vida/desejo sem medo.
Indagado sobre se seria possível viver sem medo, o psicanalista francês Charles Melman pondera que de modo paradoxal o medo acrescenta pimenta à existência.Conviver com ameaças nos reconecta com medos ancestrais. É claro que estamos diante de algo muito grave que não se trata apenas de uma crença imaginária, mas é inegável que o medo é um fator de proteção do sujeito que permite mapear e delimitar o perigo que o ronda. Nesse sentido, e a psicanálise nos mostra isso, não podemos extirpar totalmente o medo e angústia de nossas vidas, mas podemos nos reposicionar frente a isso e extrair ou criar algo a partir disso.
2) Não podemos prescindir do(s) outro(s).
O outro vem sendo colocado sob suspeita no mundo contemporâneo e talvez um dos riscos que corremos em tempos de isolamento social e individualismo estéril é justamente supor que o inimigo mora lá fora, está no outro, haja visto pessoas que se apegam em teorias contrafactuais e apontam para a culpa dos chineses na propagação do vírus. O cenário é alarmante e concorre para uma falta de implicação onde deveríamos justamente nos enlaçar no senso de comunidade e bem comum. Pensar no próximo, ter empatia, ir em direção ao outro, tudo isso é muito propagado, mas parece ficar dificultado no contexto em que vivemos. Estocar alimentos representa algo dessa ordem e mostra nossa precária experiência de alteridade. A psicanálise nos ensina que lidar com nossas assombrações é um processo que implica aquisição de autonomia e amadurecimento, construídos invariavelmente no contato com o outro.
3) Acolher a nossa vulnerabilidade nos fortalece.
Num mundo globalizado as soluções devem ser complexas e globais aponta o historiador Yuval Noah Harari em 21 lições para o século 21. Estamos diante da possibilidade de esvaziar um pouco nossa onipotência, admitir que sabemos menos do que supomos e acolher esse grau de indeterminação que a vida comporta. Corajoso não é aquele que não teme, mas aquele que sabe acolher suas fraquezas e vulnerabilidades. É preciso coragem para enfrentar o desejo que se articula no medo; a coragem é a reconversão do medo em desejo. Freud recomendava que tratássemos nossos medos e nossa neurose como um adversário digno da nossa estima, pois eles têm algo a nos dizer.
4) A solidão pode ser boa.
Num tempo de imperativo da ação, não temos muito espaço para a experiência de recolhimento que é a solidão; uma experiência simbólica que nos confronta com a separação, distância e estranhamento em relação a si mesmo. Dunker em Reinvenção da
Intimidade (2018) aponta que a solidão não pode ser vista apenas como introspecção ou introversão, mas como uma dissolução da própria solidez do ser. Tornar a solidão benéfica não significa supor que não precisamos do outro, mas sim se dar conta de que preciso do outro, mas não absolutamente. A vida é sobre parcialidades e não sobre totalidades. Chamamos a solidão que abre espaço para a criatividade de solitude, uma forma de solidão boa e necessária, assim como quando a criança descobre a possibilidade de ficar só, e que aprende que sua presença é contingente e não necessária como a própria vida. A solidão de verdade é condição para o desenvolvimento de autonomia, independência e emancipação.
5) Precisamos de espaço para coisas “vagas”.
O tempo de isolamento social nos confronta com a possibilidade de tédio e de exercício da potência negativa; não fazer coisas num mundo que sofre do excesso de positividade como aponta o sociólogo sul-coreano Byung-Chul Han em A sociedade do cansaço (2015). Esse tempo ainda pode ser usado para refletir, ler, escrever, ouvir músicas ou algo do tipo, para nos dedicarmos aos trabalhos do espírito que Paul Valéry chamou de “coisas vagas” que perderam tanto espaço num mundo dominado pela racionalidade tecnocientífica que só valoriza aquilo que é “útil”. Nesses termos podemos pensar que o “inútil” da arte, literatura, poesia nunca foram tão necessários para nós humanos, demasiadamente humanos.
6) O medo pode ser transformado em palavras.
Em As novas doenças da alma (2000) Julia Kristeva disse que a psicanálise é um dos raros lugares, preservados, de mudança e surpresa, isto é: de vida. Se abrir para essa experiência pode auxiliar a dar um contorno para nossos medos e inseguranças. Mesmo no tempo difícil em que vivemos, analistas e psicólogos do mundo todo têm disponibilizado o espaço arejado da clínica agora na modalidade virtual. Em tempos de crise esse espaço preservado que nos convida a pensar e nomear o desconhecido me parece fundamental; se a angústia é um terror sem nome, podemos apalavrá-la e aplacá-la parcialmente na análise. Por fim, cito Oswaldo Montenegro e sua belíssima letra “Metade”: “que a força do medo que tenho, não me impeça de ver o que anseio”. Que possamos reativar nosso desejo em meio a tanto medo e indeterminação.
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Vinícius Romagnolli Rodrigues Gomes é Psicanalista, Psicólogo e Historiador. Mestre e Doutorando em Psicologia. Docente do curso de Psicologia (PUC-PR). É autor do livro Adolescentes na contemporaneidade: desamparo e laços fragilizados em meio aos ideais da sociedade de consumo (Gramma, 2018).