Durante os últimos dois séculos diversos processos de violência, discriminação e preconceito marcaram a vida de mulheres também punidas com a exclusão em dispositivos manicomiais. A história de mulheres que se desviavam das normas ou das condutas padrões estabelecidos para o mundo feminino, traçado por ideais patriarcais e machistas, recentemente, começou a ser denunciada por pesquisas que exploraram, nos arquivos das instituições de internação das loucuras, as vidas aprisionadas em diagnósticos e rótulos psicopatológicos. Epilépticas, prostitutas, militantes políticas, mas, também, meninas gravidas violentadas por patrões, jovens que haviam perdido a virgindade antes do casamento, esposas, cujos maridos insatisfeitos traçavam novos caminhos com suas amantes. Esses eram alguns dos motivos que levavam mulheres a serem confinadas no Hospital Psiquiátrico da cidade mineira de Barbacena e que Daniela Arbex, no livro “Holocausto Brasileiro”, denuncia ao encontrar prontuários de mulheres, também marcados pelo machismo e misoginia.
Na luta contra os processos de violência, opressão, reclusão e morte de inúmeros internos psiquiátricos, o Movimento Antimanicomial, que escolheu o dia 18 de maio como data comemorativa de denúncias e enfrentamentos, pode ser relacionado ao movimento feminista, à medida que se discute sobre a violência de gênero também vivida nos hospitais psiquiátricos. Inegavelmente, supostos sintomas das loucuras femininas eram insistentemente relacionados a feminilidade e a sexualidade de mulheres consideradas desviantes. Segundo Juliana Vacaro, em sua tese de doutorado, “A Construção do Moderno e da Loucura”, essa violência pode ser exemplificada nos prontuários de mulheres que foram internadas no Hospital Nacional de Alienados e no Sanatório Pinel, onde se encontram queixas de familiares, geralmente do gênero masculino – pai, marido e irmão – que descrevem comportamentos considerados fora do estereotipo feminino de mãe, esposa e despossuída de desejo sexual – estabelecido pela sociedade brasileira. O conceito de loucura feminina, demonstrado muito aquém da analise cientifica, era descrito por questões morais características do patriarcalismo e que viam nos supostos comportamentos inconvenientes e desajustados uma serie de ameaças a norma social, aos bons costumes e a decência da mulher brasileira.
Dessa forma, em fins do século XIX e princípios do século XX, o projeto de construção de uma sociedade brasileira urbanizada, construído com bases nos moldes do movimento higienista europeu, se detinha no discurso medico que estabelecia o papel da mulher “bela, recatada e do lar” como essencial para a manutenção de uma determinada ordem social. A sociedade brasileira, construída no formato elitista e europeu, legitimada pelo discurso medico psiquiátrico higienista, incapaz de vislumbrar diferenças e valorizar a diversidade humana, encontrava nas determinações diagnosticas e no hospício todo seu poder de opressão. E entre muros e grades, excluía e aprisionava, nos porões da loucura, desviantes, desajustados e toda uma variedade de inconvenientes também do gênero feminino.
A resistência construída no bojo de movimentos feministas, que lutavam por melhores salários nas fabricas, por direito ao voto, ao divórcio, aos estudos e a profissionalização, proporcionariam transformações importantes para as brasileiras do século XX. Patrícia Galvão, conhecida como Pagu, artista ousada para sua época e importante figura feminina de luta contra as opressões de gênero e classe social, foi importante militante política também para o feminismo brasileiro. Bertha Lutz, líder da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, em conjunto com diversas outras mulheres, dava os primeiros passos ao processo de emancipação feminina. Nise da Silveira, formada em medicina em uma época em que poucas mulheres poderiam ocupar o espaço acadêmico, foi uma importante psiquiatra brasileira, pioneira na luta contra os tratamentos psiquiátricos hegemônicos e violentos dos manicômios, e que propunha outras formas de acolhimento e tratamento aos sofrimentos psíquicos graves. Essas foram algumas de tantas outras mulheres que se destacariam, nas primeiras décadas do século XX, na luta pela autonomia da mulher e na constituição de estratégias de empoderamento feminino.
No entanto, apesar do pioneirismo daquelas mulheres, muitas ainda continuavam sendo vítimas da rotulação psiquiátrica e das estratégias e discursos médicos de sinterização do corpo da mulher, que culminavam, tão frequentemente, em exclusões manicomiais. A luta feminina e os enfrentamentos antimanicomiais pouco se ativeram as mulheres negras e pobres que enchiam sanatórios psiquiátricos por sua condição de serem consideradas desobedientes das exigências padronizadas de beleza, decência, feminilidade, que caracterizava a mulher branca europeia e que deveria servir de modelo para brasileiras. Violências, opressões, exclusões e internamentos que aprisionaram vidas e condenavam corpos apenas por serem mulheres marcadas pela raça e classe social.
Nesse sentido, as estratégias de enfrentamento das desigualdades, discriminações e violência de gênero que o movimento feminista atual precisa traçar ainda e um processo complexo e em construção, que depende de uma ampla pauta na luta contra o sexismo, o machismo, a misoginia e o patriarcalismo ainda vigente na sociedade brasileira. Concomitante a complexidade das resistências a serem engendradas cotidianamente pelo feminismo, não é possível esquecermos a trágica história que a psiquiatria construiu nos porões manicomiais repletos de mulheres rotuladas e aprisionadas. Mulheres que, ainda na atualidade, correm o risco de serem agredidas, assediadas, violentadas e psiquiatrizadas por fugirem do padrão imposto de “bela, recatada e do lar”. Que o dialogo dos movimentos antimanicomiais e feministas se fortaleçam e nos tragam inspirações na luta para a construção de relações atentas a pluralidade da existência humana e na promoção de um mundo mais filógeno.
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Daniele de Andrade Ferrazza é Doutora em Psicologia e docente do Departamento de Psicologia da UEM.
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Jennifer Andrea Ramos dos Reis é Acadêmica do terceiro ano de Psicologia (UEM).
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Luna Carulina Mendes Filgueiras é Graduada em Publicidade e Propaganda (PUC – GO) e acadêmica do terceiro ano de Psicologia (UEM).
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Texto extraído do JPF edicação 34. Escreva pra gente! Mais informações em: https://institutopsicologiaemfoco.com.br/2019/10/21/escreva-pra-gente-2/