O silêncio tem uma grande importância para a psicanálise, principalmente na prática clínica. Ele não se refere apenas à ausência de palavras, mas é um estado afetivo que comunica, recusa, insinua. Há sempre um silêncio a ser evitado: no primeiro encontro, no círculo de amigos, no trabalho e na família. Ele é temido. O psicanalista não pode ter medo do silêncio. Porque além de ser um material de trabalho ele é uma técnica de intervenção clínica.
O silêncio é nosso estado primeiro, em torno do qual as palavras gravitam. A figura do vazio. Faz-se vida com o verbo, que passa a dar formas e contornos à existência. O silêncio também é nosso estado último. A morte é aquilo que cessa a produção de novas palavras no sujeito. Talvez seja esse um dos motivos pelos quais hoje as pessoas queiram escutar tudo, menos o silêncio. Esperar em silêncio, comer em silêncio e até ler são situações cada vez mais raras. O vazio é inundado pela tecnologia informatizada, que promete nos preencher plenamente. A televisão ligada na hora de dormir ou o celular que insiste em tocar musicas barulhentas em situações de pausa ou repouso. O consumo desses bens não vai nos livrar de nossa finitude, dos limites frágeis e silenciosos de nossas vidas. Esse barulho extremo é apatia. Esse grito pode ser falta de voz.
O silencio gera medo não apenas por ser esse estado além ou aquém do humano. Mas também porque ele porta as palavras proibidas, censuradas e rejeitadas. O sintoma no corpo é uma forma de dizer o que se calou. Novamente os bens de consumo, principalmente os fármacos, se tornam estratégias para emudecer. Igualmente, usa-se várias palavras para encobrir, ocultar. É preciso muita tagarelice para enterrar os ditos proibidos. Em muitos momentos da análise o silêncio anuncia a entrada em um território no qual o sujeito não quer pisar. “Eu não tenho nada a dizer”: são as portas que tapam o negado, o recalque – o que foi silenciado.
No texto “Tratamento Psíquico (ou anímico)”, Freud (1905a) escreve sua descoberta do poder das palavras, sobre como sua representação se articula ao corpo. O afeto é testemunha dessa articulação. Assim escreve:
O leigo por certo achará difícil compreender que as perturbações patológicas do corpo e da alma possam ser eliminadas através de “meras” palavras. Achará que lhe estão pedindo para acreditar em bruxarias. E não estará tão errado assim: as palavras de nossa fala cotidiana não passam de magia mais atenuada. Mas será preciso tomarmos um caminho indireto para tornar compreensível o modo como a ciência é empregada para restituir às palavras pelo menos parte de seu antigo poder mágico (Freud, 1905, p.271)
O encanto das palavras reside no fato de impactarem no corpo e na cultura. A linguagem enlaça os seres humanos, “[…] por isso já não soa enigmático afirmar que a magia das palavras pode eliminar os sintomas patológicos, sobretudo aqueles que se baseiam justamente nos estados psíquicos” (Freud, 1905, p.279). As palavras nos tiram da animalidade. Por meio delas nos tornamos sujeitos, adentramos a civilização.
A experiência de análise se funda em um trabalho de nomeação. Ou seja, a entrada na análise é a saída do silêncio. A psicanálise é um saber falar, Talking Cure, mas também é um saber escutar e um saber ver. Não as palavras do analista (isso seria sugestão), mas as próprias palavras, aquelas recusadas. O analista empresta seu corpo para que elas falem, para que falhem: esquecimentos, lapsos, duplos sentidos, chistes, sonhos. As formações do inconsciente são provas de que as palavras silenciadas insistem em serem escutadas.
Freud (1898) no texto “Sobre o mecanismo de esquecimento psíquico” não encontra palavras para nomear o afresco de Orvietto – o esquecimento de Signorelli. Diante desse vazio mnêmico ele constrói a compreensão da existência de outra lógica em nossa vida psíquica, em que imperam leis particulares, diferente das que dominam na consciência. Há algo em nós que tende ao apagamento e nossos saberes nos escapam.
Clarice Lispector (1996) em seu conto chamado “Silêncio” diferencia dois tipos dele: o grande silêncio e o pequeno. Ela nomeia como grande silêncio esse estado último, sem lembranças de palavras. Assim ela diz:
É um silêncio que não dorme: é insone: imóvel mas insone; e sem fantasmas. É terrível – sem nenhum fantasma. Inútil querer povoá-lo com a possibilidade de uma porta que se abra rangendo, de uma cortina que se abra e diga alguma coisa. Ele é vazio e sem promessa. Se ao menos houvesse o vento. Vento é ira, ira é a vida. (p.73)
É preciso quebrá-lo para que a vida se faça. É o silêncio da impossibilidade dos verbos, do trauma, do luto por fazer, do corpo, da dor que não pode ser simbolizada e se tornar sofrimento. Assim “Quando este se apresenta todo nu, nem é comunicação, é submissão. Pois nós não fomos feitos senão para o pequeno silêncio” (Lispector, 1996, p.76). Ao final do conto ela escreve sobre outro tipo e silêncio, o pequeno. É um silêncio que existe na e pela vida. O pequeno silêncio é necessário, pois é impossível tudo dizer. Ele é a falha, o tropeço e também portador do silenciado. Lispector (1996) continua a falar deste “Depois de uma palavra dita. Às vezes no próprio coração da palavra. Os ouvidos se assombram, o olhar se esgazeia – ei-lo. E dessa vez ele é fantasma” (p.76).
O silêncio que é o limite, o silêncio que é recalcado é povoado de fantasmas. Como já anunciei, o psicanalista não recua diante da cena muda. Freud, diferentemente de Breuer, decide enfrentá-la – é o que acontece na transferência.
O silêncio é uma atitude técnica, que é usada em muitos momentos para “invocar fantasmas”. Quem sofre dirige suas palavras àquele que o escuta. A não resposta do analista, seu silêncio, remete o sujeito a suas origens inconscientes, aos alicerces arcaicos do amor. Mas é preciso lembrar que essa atitude técnica não é indicada para todos os casos ou em todos os momentos da análise. Há silêncios que são improdutivos. O silêncio é ambíguo e nisso reside saber usá-lo. Há fantasmas mais difíceis de serem suportados. Para isso temos que construir uma base sobre a qual analista e analisando possam pisar antes de enfrentá-los. É preciso enfatizar que às vezes a “interpretação” do analista, seu excesso de explicação nada mais faz do que tentar enjaular os monstros, silenciando novamente o que pulsa.
Freud (1905b) ao estudar os chistes, os ditos espirituosos, que são espécies “brincadeiras verbais” formadas por conteúdo inconsciente, escreve que esses são formados involuntariamente. “Não acontece que saibamos, um momento antes, que chiste vamos fazer, necessitando apenas, vesti-lo em palavras” (Freud, 1905b, p.158). Sobre a relação do inconsciente com as palavras, Freud (1905b) oferece a imagem de que a palavra é a roupa das coisas. Nesse sentido, em uma análise, precisamos nos despir, deixar que se revele. O silêncio do analista é o que dá suporte às associações. É o que sustenta a figuras projetivas. Como nos lembra Alonso (1988) a psicanálise inaugura o campo da escuta, produzindo uma verdadeira ruptura epistemológica concernente a psiquiatria da época. “Diria então que, do lugar do analista, se escuta tudo, para poder escutar alguma coisa. Coisa essa que é o inconsciente, que no seio da repetição insiste para ser escutado, que na trama dos movimentos imaginários, se disfarça, se fantasia e, no entanto, vai tecendo o fantasma” (p.21-22).
O silêncio modifica as demandas, a cada momento. Nesse sentido ele é uma espécie de morte. Quando silenciamos o disfarce fazemos falar o silenciado, ressignificamos nossas perdas. Morremos várias vezes, para fazer re-viver novos sentidos, novas palavras.
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Samara Megume Rodrigues é psicóloga clínica, analista em formação. Possui mestrado em Psicologia (PPI/UEM). É idealizadora e coordenadora da “Roda de Psicanálise: espaço de transmissão e Formação”.
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