Sobre a depressão
por José Artur Molina
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“Meus ombros suportam o mundo, e ele não pesa mais que as mãos de uma criança”
Carlos Drummond de Andrade
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Molina: Bom dia Dr. Freud! Hoje é dia 24 de setembro de 2018. Faz 79 anos que o senhor deixou o mundo. E estamos aqui agora conversando para o século XXI. A minha preocupação nestes nossos encontros é trazer para o grande público as questões fundamentais do aparelho psíquico proposto pela Psicanálise. Não sei se conseguiremos, mas vale a pena tentar! Falamos na seção passada sobre tristeza, luto e depressão, que o senhor chama de melancolia. E ao falar de depressão necessitamos propor dois conceitos fundamentais: o de identificação e projeção. O primeiro se refere a querer ser. O segundo consiste em depositar sobre o outro questões que são suas. É preciso que se entenda que um ser humano se transforma em pessoa a partir de uma relação com outro. Tudo aquilo que vejo ao meu redor incorporo-o como meu, via identificação. Ao contrário, por projeção, atribuo ao outro os meus pecados. De qualquer forma nos construímos seres humanos através das trocas que mantenho com os objetos do mundo. Assim o que recebemos do outro nos ajuda a construir a obra de construção de nós mesmos. Em outra ocasião falamos do amor como um gesto dirigido ao outro. Mas quando nos referimos às perdas e ao sofrimento profundo com o qual nos deparamos, percebemos que coisas pouco acessíveis ao senso comum estão em jogo. O que eu amo em alguém é uma parte de mim que habita o outro. Quando perdemos alguém sofremos uma mutilação no nosso eu. Com o tempo vamos cicatrizando a ferida narcísica que o abandono do outro provocou. O senhor fala em substituição do objeto perdido. Este processo leva algum tempo. Juan David Nasio é um psicanalista argentino, radicado em Paris, que tem uma enorme habilidade em traduzir situações complexas em algo compreensível para um leigo. O tema do luto é tratado por ele num pequeno livro chamado “A dor de amar”. Ele começa contando um caso clínico. Trata-se de uma paciente de 38 anos que depois de muita luta consegue engravidar. A criança nasce e a alegria é extraordinária. Pouco tempo depois, ainda no hospital, a criança morre. A dor de Clémence é insuportável. Fica completamente inapetente para a vida. Só pensa em Laurent, o bebê. Ninguém sabe o que aconteceu, nem nunca se soube. Ela se pregunta porque eu, porque meu filho? Qual a razão para essa tragédia? As pessoas ao redor de Clémence na tentativa de consolá-la diziam para ela ter outro filho e pronto! Simples assim! Clémence sentia-se indignada com tais declarações. Era como se matassem Laurent duas vezes. Era preciso viver o luto. Mergulhar na tristeza profunda. Desligar-se do mundo. As pessoas ao redor, ao deparar-se com alguém nesse estado são movidas por um desespero simplista e saem vomitando soluções incabíveis para quem só precisa sofrer a perda de um amor e viver o silêncio necessário para tal. Clémence passa por vários meses de terapia. Ela se coloca em construção de uma narrativa que vai edificando a história dela e de Laurent. O sofrimento, aos poucos, vai se escoando por entre as palavras. Até que um dia, Clémence está à espera de outro filho. Nasio, seu terapeuta, diz, quase instintivamente: Laurent vai ganhar um irmãozinho! Essas palavras promovem um sereno movimento em Clémence. Laurent não era um vazio. Tinha um lugar. Ele iria ganhar um irmãozinho. Com essa experiência, Nasio reflete sobre o que aconteceu: “Atribuir um valor simbólico a uma dor que é em si puro real, emoção bruta, hostil e estranha, é enfim o único gesto terapêutico que a torna suportável”. Assim, o psicanalista é um intermediário que acolhe a dor inassimilável do paciente e a transforma em uma dor simbolizada (Nasio, 2007, p. 19). A dor simbolizada significa uma dor que, antes era muda, e que agora ganha palavras, podendo se relativizar, perder força uma vez abrigada no seio da rede de sentidos da história do sujeito. A dor simbolizada não produz sintomas. Pois bem, o depressivo não pode fazer isso! Há uma impossibilidade simbólica naquele momento que não o deixa colocar palavras no limite da dor. Ela continua muda e seu efeito perverso também. Pode ser que o sofrimento diminua pela ingestão de antidepressivos, o que é um lugar desejável. Ato seguido é preciso “apalavrar” a mudez do sofrimento para que a pessoa possa ganhar sua vida de volta.
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Dr. Freud: Nunca estamos tão mal protegidos contra o sofrimento como quando amamos, nunca estamos tão irremediavelmente infelizes como quando perdemos a pessoa amada ou seu amor (Freud citado por Nasio, 34-35).
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Molina: No luto existiriam duas frentes de trabalho. Uma delas é o superinvestimento do eu sobre a pessoa que se perdeu. Afirma Nasio: “Diante da morte súbita de um ser querido, acontece frequentemente que a pessoa enlutada se ponha à procura dos sinais e dos lugares associados ao morto e, às vezes, a despeito de qualquer razão, imagine que pode fazê-lo reviver e reencontrá-lo” (Nasio, p.43). A dor é tão forte que se produz uma presença delirante do objeto perdido na fantasia. Para cima da razão, o fantasma do amor perdido se faz presente. Se a perda foi por morte se faz um culto a sua imagem. Se foi por abandono, mil estratégias são feitas para recuperar o amor perdido. O eu busca uma parte perdida de si mesmo. Isto porque o eu é um operador do psiquismo. Em outra frente, o trabalho do luto tentará, na medida do possível, ir reinvestindo a energia psíquica em outro lugar. Esta é uma tarefa do sistema psíquico. Quando isso ocorre o objeto perdido vai sendo desenergizado, ou seja, esquecido. A saúde está no esquecimento! O outro vai saindo de minha alma lentamente, deixando apenas seus vestígios. Mas aí está o que dizíamos lá atrás, como diria um depressivo inconscientemente: o que amo em você é o que sou em você. Identificação. Assim, quando me imagino em suicídio, é você em mim que quero matar. Não sou um suicida, sou um assassino. É forte! Mas é coerente com a teoria da identificação.
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Dr. Freud: Na melancolia, em consequência, travam-se inúmeras lutas isoladas em torno do objeto, nas quais o ódio e o amor se digladiam; um procura separar a libido do objeto, o outro, defender essa posição da libido contra o assédio. A localização dessas lutas isoladas só pode ser atribuída ao sistema Inconsciente, a região dos traços de memória de coisas, a diferença das representações de palavras (p. 261).
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Molina: Esta é uma questão muito relevante. O senhor atribui à melancolia a um universo não simbólico, inconsciente, representação de coisa e não de palavra. Pierre Fédida (outro psicanalista francês) abre uma discussão importante sobre as depressões. Para ele, elas seriam uma resposta possível ao vazio de existência. No luto o encontro é com a falta. Na depressão esse encontro é com o vazio. O luto se depara com a ausência. A depressão com o nada. Esse nada seria o negativo do psiquismo. O termo negativo refere-se ao filme não revelado das máquinas fotográficas antigas. O escuro que receberá uma imagem pela luz do simbólico. Então concluiríamos que a depressão é um fenômeno que expressa uma impossibilidade de ver alguma graça na vida. Fédida, por sua vez, coloca a depressão como uma alternativa possível ao abismo. E, para que o sujeito não seja aniquilado, sugado para um buraco negro da perda da si, o depressivo se estabelece na imobilidade. Talvez que por essa razão quando tentamos tirar um depressivo da posição vivo inanimado corremos o risco de levá-lo a um movimento em direção ao suicídio. Ou seja, é preciso cuidar, mas sem invadir para que seja possível que a depressão possa ser substituída por uma ausência, uma falta, para depois caminhar para uma substituição do objeto perdido. O vazio não tem história. A ausência sim. E é esse processo que o depressivo deve viver. Transformar o vazio em ausência significa ancorar a angustia de existir nas melancólicas passagens de minha vida. Significa colocar uma história onde havia a mudez. Assim a melancolia vai se transformando em luto e, a partir daí o tempo terminará a tarefa.
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Dr. Freud: Conforme já sabemos, a interdependência dos complicados problemas da mente nos força a interromper qualquer indagação antes que esta esteja concluída – até que o resultado de uma outra possa vir em sua ajuda (p. 263).
Molina: Obrigado!
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José Artur Molina é psicólogo, psicanalista, Professor Associado de Psicologia na Universidade Estadual de Maringá, pós-doutorado em Psicologia na área de Psicologia e Saúde Mental pela Universitat Autonoma de Barcelona, doutorado em Psicologia e Sociedade pela UNESP-Assis, mestrado em Teoria Psicanalítica pela Universidad Complutense de Madrid, autor de vários livros entre eles: O que Freud dizia sobre as mulheres, Editora da Unesp, 2012, 2ª. Edição (3000 dowloads, 2000 exemplares vendidos, 2ª. Reimpressão, A verdade na loucura, 2017, e Teoria do Inconsciente, 2017, Novas Edições Acadêmicas. No prelo: Freud: como vejo a vida, uma entrevista.
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Referências
Fédida, P. “Depressão”, Editora Escuta, São Paulo, 1999.
Freud, “Luto e Melancolia”, (1915), Obras Completas, Imago Editora, Rio de Janeiro, 2006).
Nasio, J. D. “A dor de amar”, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2007.