Sobre-vivências de uma pandemia.
por Caroline Polizeli
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Em 11 de março a OMS anunciou uma pandemia mundial causada pelo novo Coronavírus .O Corona, vírus que se apresenta como novo, além causar uma grave doença, parece revelar questões antigas, familiares. Escrever sobre vivências desse momento desperta em mim ambivalências: recusa e desejo, vontade e demora. Escrevo talvez tentando dar forma ao caos, contando com a possibilidade dos contornos da linguagem e os aportes da Psicanálise.
A situação anunciada, levou-me à um estado de suspensão. Devido à ausências de informações e periculosidade da doença disseminada pelo contato, sentia-me como se estivesse entrando em um túnel escuro, sem nenhuma garantia de sair, ou do que iria encontrar. Pais idosos, família distante, pacientes angustiados, alunos revoltados e o mundo, ao redor, padecendo. Por falar em mundo, confesso que, foi , aos poucos, que me abri para ele, tentando, antes, refugiar-me em meu narcisismo, talvez aquele necessário à sobrevivência dos primeiros tempos?
No mundo, encontrei uma dor maior ainda: hospitais lotados, famílias em estado de miséria, dor. Questões urgentes, existenciais: Ficar em casa? Trabalhar? Quem pode fazer isolamento? Comida na mesa? A quem recorrer? Ao refletir sobre esse cenário, associo rapidamente ao conceito Infamiliar de Freud : aquilo que é estranho, mas guarda certa familiaridade. (FREUD, 1939)
A escuta clínica levou-me para perto do in(familiar) de novo. Ouvindo meus pacientes, percebia que o medo em relação ao vírus tornava-se ínfimo frente a demanda dolorosa de estar longe do outro e, ao mesmo tempo, tão próximo de si. Ouvia, muitas vezes, o quão doloroso tornava-se o contanto com os próprios fantasmas no isolamento. Necessidade urgente do outro. Mas o outro não é aquele que pode infectar? Qual a distância ótima entre eu e o outro? Ah! Questões familiares.
O vírus chegou perto, senti uma dor quase inaugural, medo de ter sido infectada, medo de ter infectado, medo de perder a pessoa doente. Medo de matar, medo de morrer. Será tão inaugural assim?
Freud, em 1920, dizia que algumas experiências são indizíveis, arrancam-nos as palavras, nos atormentam no corpo, esgarçam nossa capacidade de pensar. Faz-se necessário mais do que uma mente para , a partir delas, construir algum sentido. Assodico aqui as experiências vividas por mim, e por aqueles que escuto. Sozinha, consigo tecer poucas leituras sobre o tempo presente. Preciso de outras mentes. Continência, continuidade.
Hoje, permito-me sair do narcisismo e alcançar alguma alteridade. Abastecer-me, de palavras e escutas, escutar e acolher o outro. Guimarães Rosa nos diz que o amor é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura. O estado de suspensão continua, mas em meio a ele, percebo que se criaram redes de amor e cuidado, novas formas de presença, amparo e carinho. Talvez por isso, agora tenho esperança. Esperança em nossa humanidade. Sigo.
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Caroline Polizeli. É Psicóloga formada pela UEM no ano de 2016. Mestre em Subjetividade e Contemporaneidade pela UEM. Atualmente atua na Clínica Psicanalítica e cursa Doutorado em Psicanálise pela UNESP- ASSIS. CRP: 06/131289