A opressão estrutural e a alienação das responsabilidades
.
por João Henrique Piva Boeira e Gabriel Arndt
.
Sou um judeu. Então um judeu não possui olhos? Um judeu não possui mãos, órgãos, dimensões, sentidos, afeições, paixões? Não é alimentado pelos mesmos alimentos, ferido com as mesmas armas, sujeito às mesmas doenças, curado pelos mesmos meios, aquecido e esfriado pelo mesmo verão e pelo mesmo inverno que um cristão? Se nos picais, não sangramos? Se nos fazeis cócegas, não rimos? Se nos envenenais, não morremos? E se vós nos ultrajais, não nos vingamos? […] (William Shakespeare).
Shakespeare (1564-1616), na primeira cena do terceiro ato de sua peça “O Mercador de Veneza”, nos presenteia com esta tocante fala dramática do judeu Shylock. Mas para além do antissemitismo evidente, a personagem nos ilustra a dificuldade de muitos em perceber que, mesmo na diferença, a figura de um outro divergente é capaz de sentir e pensar.
O berço do ataque à alteridade obviamente não surge no tempo de Shakespeare. Em 2002, o historiador Patrick Geary resgata em seu livro “O Mito das Nações – A invenção do Nacionalismo” como, ao pensarmos nos primeiros agrupamentos de povos primitivos, foi traçada uma linha imaginária entre o nós e o eles, ou o que poderia ser diferenciado. Não com dificuldade percebemos que ao se fazer este tipo de separação edifica-se uma política de ódio estrutural. Essa política passa a fazer parte constituinte do self de qualquer nascido in loco.
Geary pode fazer parecer que o assunto se trata de uma questão meramente geográfica, mas vai muito além. Ele questiona se seria correto afirmar a estabilidade de um grupo tomando por base definições produzidas artificialmente, como religião, etnias e linguagem. Faz isso pois entende que delimitar a existência humana possibilita que estes aspectos sejam entendidos livremente e manipulados de forma conveniente pelos que detém o poder. Manipulação esta que “justificou” regimes como o Terceiro Reich ou a caçada incessante ao comunismo no Brasil.
Em 1963, Hannah Arendt lança seu polêmico livro “Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal”, que reúne cinco artigos escritos para a The New Yorker. Antes mesmo do oficial nazista ser capturado na Argentina, percebeu-se que muitos soldados alemães buscavam explicar suas ações alegando estarem apenas seguindo ordens. O que surpreende Hannah, no entanto, é como Adolf Eichmann, um oficial de uma das patentes mais altas da SS (Obersturmbannführer), pode se declarar inocente, enquanto seu trabalho era gerir a logística de deportação em massa para os guetos e campos de extermínio. Para Hannah, o verdadeiro mal oculto nas sociedades modernas seria a capacidade do estado em igualar a prática da violência como mero cumprimento de uma atividade burocrática. Cabe destacar que o propósito da autora nunca foi isentar Eichmann de suas ações – o que lhe rendeu más interpretações até a sua morte.
Recentemente vivemos a exoneração do até então secretário especial da cultura, Roberto Alvim (nome artístico de Roberto Rêgo Pinheiro) – nomeado por Jair Bolsonaro. A repercussão foi grande, onde ao som de Wagner, parafraseou trechos de um discurso de 1933 feito por Joseph Gobbels (ministro da propaganda de Hitler) em um vídeo publicado nas suas redes sociais. O caso por si só trouxe bastante discussão. Ao negar qualquer relação com ideologias nazistas, trouxe à tona um problema que parece ter se tonado cada vez mais recorrente entre os integrantes do conservadorismo brasileiro: um movimento de autoalienação frente às suas ações. Especificamente aquelas produto do ódio estrutural, que delimitam e sufocam as minorias em representatividade.
Segundo Hannah, o ausentar-se do senso crítico e o seguir regras vigentes sem a reflexão é o que possibilita a suscetibilidade da prática de atos que talvez jamais seriam executados em circunstâncias distintas. Um sujeito que se coloca como indivíduo desconectando-se de seu contexto tenderá a se distanciar de sua responsabilidade social.
Uma das características do fascismo é a necessidade da criação de um sentimento de ultranacionalismo. Nisto, a nação se torna um significante que deve despertar um significado atrelado com a imagem de um tempo dourado, independentemente de suas raízes realistas ou não.
Ainda na década de 30, Sérgio Buarque de Holanda já analisava movimentos de caráter fascista na nossa população. Naquele tempo, houve uma tentativa de resgate por parte dos conservadoristas de um passado brasileiro idealizado, o que para o autor se mostra como uma grande hipocrisia, já que toda a nossa trajetória histórica é marcada por injustiças, exploração e desigualdade. Isto se mantém até mesmo para as classes mais privilegiadas, uma vez que todo o seu luxo era importado. Algo muito semelhante volta a ocorrer no governo de Bolsonaro quando, diante da obscuridade das ações do estado pós golpe de 64, fabula-se um tempo de prosperidade e segurança. O alcance obtido por intermédio das ações promocionais pró Bolsonaro se deu impulsionada pelas conhecidas fake news. Se outrora o cidadão tinha que se preocupar com a parcialidade de uma notícia ao acessá-la em determinada mídia, hoje, não só deve continuar se preocupando com isso, como também se ater a veracidade da mesma. Trata-se de um sintoma de nossa sociedade contemporânea que encontra uma via facilitada de expressão em decorrência do nosso perfil ready to take. Com as fake news, o governo tem podido manipular os embates de ideias, culpar o fantasma do comunismo de todos os seus fracassos, e forjar, em primeira mão, um perfil estadista capaz de despertar identificação em todos aqueles mais embebidos nas reminiscências de nosso passado não elaborado.
A propaganda é o maior instrumento do totalitarismo, e possivelmente o mais importante para enfrentar o mundo não totalitário. Somente quando nos extrovertermos e passarmos a nos apropriar do espaço midiático, é que começaremos a ter uma chance real de revolução em nosso país.
.
João Henrique Piva Boeira é graduado em Design (UEM) e acadêmico do último ano do curso de Psicologia.
.
Gabriel Arndt é Psicólogo clínico (CRP: 08/30796), líder comercial do Instituto Psicologia em Foco, membro da Escola de Psicoterapia Psicanalítica de Maringá – EPPM. E cursando o 2º ano de especialização em Psicoterapia Psicanalítica Contemporânea (EPPM).