A Viena do fim do século 19
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Por Vinicius R. R. Gomes
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Um dos inequívocos méritos da série “Freud” produzida pela NETFLIX foi a ambientação e a maneira como retratou a Viena do final do século XIX; a capital do Império Austro-Húngaro vivia um momento de efervescência social, política e cultural que já dava mostras da sua frágil construção política que redundaria na sua desintegração após o final da Primeira Guerra. Ao contrário da burguesia francesa e inglesa, a burguesia austríaca não conseguiu destruir a aristocracia dos Habsburgo, daí a figura enfeudada do longevo imperador Francisco José (1830-1916), soberano de um imenso império formado por minorias insatisfeitas, pois afastadas da cena política. Na série vemos que vários personagens estão às voltas com seus pais, em relações conturbadas e marcadas por forte agressividade reprimida. Podemos associar esse desejo temido de assassinato do pai com essa conjuntura política; há uma cena emblemática do filho do imperador, Rodolfo, perseguindo e tentando matá-lo num labirinto, aqui vale lembrar que Viena é a cidade das espirais e dos círculos infinitos. A própria psicanálise de Freud fará uma revalorização simbólica da figura decaída da paternidade, lembrando que é a partir da morte de seu pai Jacob em 1896 que Freud passa a empreender sua autoanálise que levara efetivamente à psicanálise.
Freud viveu 78 anos em Viena, de 1860 a 1938 e teve uma relação ambígua, muitas vezes criticando a cidade a qual era tão apegado, com apreço por obras de arte clássicas, Freud não se entregou pela arte moderna, nem pelos pintores da Secessão de Viena. O psicanalista José Artur Molina retrata de maneira magistral esse Zeitgeist a partir da condição das mulheres, dos romances de Schnitzler e das obras de arte de Klimt em seu livro O que Freud dizia das mulheres. Molina argumenta como esse cenário forneceu condições para o surgimento da psicanálise a partir da ausência de instrumental da ciência moderna para tratar os enigmas das histéricas, mulheres tomadas como teatrais e dissimuladas diante de sintomas que ao não serem compreendidos pela racionalidade médica, acabavam por receber toda sorte de tratamentos desumanos.
A série captura bem esse estado das coisas e também mostra como o germe do nacionalismo que levará às guerras já estava presente. Como sabemos, os nazistas tomarão Viena e farão com que Freud siga exilado para Londres. Viena irá recalcar a psicanálise e o nome de Freud. Roudinesco chega a dizer que o esquecimento de Freud foi tamanho que guias turísticos sequer mencionavam seu nome. O apartamento da Rua Bergasse 19, no qual Freud viveu a partir de 1891 foi transformado em museu em 1971, mas já não tinha muito encanto, afinal a maioria da mobília havia sido levada para Inglaterra. Ficaram algumas fotografias, uma bengala e um chapéu.
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Vinicius R. R. Gomes é Psicanalista, Psicólogo e Historiador. Mestre e Doutorando em Psicologia. Professor universitário (PUC-PR). Fundador do Instituto Psicologia em Foco.