De Fleur à Freud
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por Émily Albuquerque
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Sabemos que há poucos filmes que retratam a história da mulher sem que esta esteja em um papel secundário ao olhar masculino, a começar pela própria direção cinematográfica que a maior parte é produzida a partir do olhar masculino.
Parece que só conseguimos ver um protagonismo da mulher se esta for erotizada, sexualizada ou sendo cuidada e amada por uma figura masculina.
O que na série teria de diferente disso?
Fleur seria a principal protagonista dessa primeira temporada?
Protagonismo este que se assemelha às principais mulheres que estão no contexto histórico da construção etiológica das neuroses, como: Lucy, Ammy, Khatarina, Anna O, Dora, dentre tantas outras mulheres que se não fossem por elas, talvez, a psicanálise não existiria como método de associação livre e de escuta.
Fleur não foi diferente, ela aparece na série com suas fantasias, traumas, sonhos, desejos e sintomas que vão sendo aprofundados no decorrer dos episódios. Como os pacientes no decorrer das sessões que vão sendo protagonistas cada vez mais de suas histórias contadas. Cenas estas que não cessam.
E Fleur não cessou, levando a si mesma até a última cena com maestria seu desejo adiante, apesar de…
De que? Dos homens que estupraram Fleur? Que a perseguiam como animais? De ser considerada louca e internada em um sanatório? De ser usada e objetificada pela própria família?
Longe da arte, talvez a série nos mostre um pouco de como é ser mulher em Viena, no final do século XIX. Onde majoritariamente todas as representações jurídicas, médicas, artísticas, políticas são… masculinas. Os sintomas não seriam outros se não o do próprio corpo como denúncia.
Aliás, se não há possibilidade de acessos a outros recursos, o corpo é o que fica como recurso e instrumento de defesa, não?
Portanto, parece que não foi à toa que a psicanálise começa seu desenvolvimento teórico com as mulheres, não sendo à toa que Fleur protagonizou uma série cujo título não apresenta seu nome.
Como na cegueira fálica do cotidiano, ainda hoje, apesar de compor a maior parte das cenas, Maria, Rita, Julieta, Virgínia, Françoise, dentre outras psicanalistas e pacientes nos convidam para ir além. Como as últimas falas proferidas por Fleur: “Não tenho medo. É o que eu quero.”
Émily Albuquerque é psicóloga clínica CRP 08/024208, mestra em Subjetividade e Práticas Sociais na Contemporaneidade pela UEM. Especialista em Psicoterapia Psicanalítica Contemporânea e professora de teoria e prática psicanalítica na UniFCV.