“De um lado, as meninas estão decididas a não aceitar mais nenhum abuso, nenhum. Por outro lado, acho que ainda falta uma volta nesse parafuso; penso que precisam entender que o inimigo é o machismo, mas não necessariamente os meninos.”
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JPF — Em sua obra “deslocamentos do feminino” a senhora apresenta três conceitos: a mulher, a posição feminina e a feminilidade. Qual seria a diferença entre eles?
MARIA RITA — Bem, “mulher” não e difícil definir: tem a ver com o sexo biológico. Embora Freud (e não Simone de Beauvoir, que o citou e ficou com a fama) tenha dito que “não se nasce mulher, torna-se mulher”, a primeira coisa que se diz de um bebe ao nascer e: “menino/menina”. A posição feminina ou a posição masculina são as posições subjetivas que cada um ocupa, de acordo – ou não – com o sexo biológico, na relação com o sexo supostamente oposto. A feminilidade e uma construção e estilo que varia de acordo com a cultura, a classe social, etc. E “posição feminina” e um conceito ligado a subjetividade e a sexualidade; refere-se ao modo como a mulher desfruta de seu corpo e do corpo do parceiro (ou de uma parceira mais fálica) na relação erótica.
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JPF — Na apresentação de seu livro, Marilena Chaui aponta que Freud se refere ao feminino como mistério e enigma, mantendo a imagem da mulher burguesa doméstica e dependente, e isso fez com que muitos o acusassem de misoginia. Como a senhora vê esta questão?
MARIA RITA — Eu gostei do que a Marilena escreveu porque esta em consonância com o que escrevi no livro: a sexualidade da mulher, na era vitoriana, não era enigmática apenas para o homem; era enigmática para a própria mulher. O “mistério” feminino e um produto da extrema repressão que recaia sobre o corpo das mulheres. Nem elas mesmas conheciam os “mistérios” de seu sexo e de seu gozo. Freud decifrou muitos aspectos dos sofrimentos das mulheres, mas não poderia ter desvendado um desejo feminino que era opaco para ele ate dentro do próprio casamento. Mas, apesar dessas limitações, ele foi capaz de escutar as histéricas e, a partir disso, de desvendar a origem sexual dos sintomas neuróticos..
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JPF — Como a senhora enxerga a ascensão de discussões sobre o movimento feminista? Seria uma interessante resposta do sofrimento das mulheres nos nossos tempos atuais?
MARIA RITA — Não me considero qualificada para responder a contento essa pergunta porque não tenho um lado, as meninas estão decididas a não aceitar mais nenhum abuso, nenhum. Exigem respeito a seus corpos, sua independência, seus desejos e suas recusas. Por outro lado, acho que ainda falta uma volta nesse parafuso; penso que precisam entender que o inimigo e o machismo, mas não necessariamente os meninos..
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JPF — Na sua obra “o tempo e o cão”, há uma discussão sobre a depressão como um sintoma social de nosso tempo. A partir de sua experiência clínica, como a senhora enxerga as diferentes manifestações do sofrimento na atualidade?
MARIA RITA — De maneira geral, ha uma relação muito direta entre o aumento das depressões e o sentimento de desesperança; quando o sujeito se vê impotente diante das forcas que comandam seu destino ele se deprime, se encolhe. Mas nem sempre as situações de opressão na vida social causam depressão: quando as pessoas se unem para combater o que os oprime, mesmo em situações difíceis, a luta coletiva pode ser um forte antidepressivo! Acrescento ainda que, em “O tempo e o cão”, eu relacionei um aspecto do aumento das depressões a um efeito da sociedade de consumo: o deprimido não seria um sujeito a quem faltam coisas, mas um sujeito a quem falta espaço para desejar. Resumiria em uma frase: “a depressão e o sujeito saciado”.
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Maria Rita Kehl é Psicanalista, Doutora em Psicanálise (PUC-SP), jornalista e escritora. Entre 2012 e 2014 participou da Comissão Nacional da Verdade que investigou os crimes cometidos por agentes do Estado brasileiro durante a ditadura militar. Autora de (entre outros): Deslocamentos do feminino – a mulher freudiana na passagem para a modernidade. São Paulo: Boitempo 2016 (3ª edição) e O tempo e o cão – atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo 2009 – prêmio Jabuti do ano de 2010 na categoria de não-ficção.
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Entrevista extraída da edição 34 do Jornal Psicologia em Foco.
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