Filme “o poço” – A profundeza que propõe um pensamento
.
por Carlos Alberto da Silva
.
“O poço é fundo.”
(Evangelho de João 04,11)
.
“O Poço” é um filme espanhol, produzido em 2019, dirigido por Galder Gaztelu-Urrutia e que teve sua estreia no Brasil em março deste ano. Sendo lançado em uma hora propícia, tem muito a nos dizer sobre o atual contexto de pandemia em que estamos vivendo e a sempre atual sociedade do consumo, globalizada, capitalista e ausente de solidariedade.
Goreng (Iván Massagué), personagem principal, que tem princípios notáveis de bondade – e passa por diversos dilemas, delírios e reconstruções no decorrer do filme -, se encontra juntamente com um grupo de prisioneiros dispostos em duplas em diversos andares de um prédio, onde uma plataforma de comida desce para alimentá-los e volta para o topo, diariamente.
Acontece que aqueles que estão nos andares inferiores não recebem nenhuma comida, pois os de cima saboreiam primeiro o delicioso banquete. Trimagasi (Zorion Eguileor), um dos prisioneiros mais “experientes”, expressa muito bem o óbvio da estrutura do poço, que pode ser pensado como as relações da sociedade capitalista, cujas engrenagens foram expostas por Karl Marx já no século XIX, onde os poucos “de cima” servem-se de melhor “alimentação” sobre os de baixo.
Também neste contexto, podemos nos relembrar do Jesus histórico, que viveu nas regiões de Jerusalém e proximidades nos primeiros anos da era cristã. Ele sabia muito bem acerca do “poço” de distanciamento existente entre judeus e samaritanos. No relato do evangelho de João, Jesus, com sede, se aproxima de uma mulher samaritana abandonada por diversos maridos junto a um poço de Jacó, na região de Sicar, lhe pede água e ela o interpela dizendo que ele não tem um balde para tirar água e poço é fundo, ressaltando as rixas e divisões entre os dois povos.
Realmente Jesus propôs uma união profunda não somente entre estes dois povos, mas entre todos os povos, para além da superação do “poço” de suas dificuldades históricas. Muito mais que isso, propôs aquilo que no decorrer do filme podemos acompanhar: a união para reverter sistemas opressores (tentar fazer com que a plataforma voltasse com um sinal contrário ao comumente esperado), a luta pela igualdade de direitos (alimentos para todos), o acolhimento integral do ser humano (superação das rivalidades, aceitação dos outros e sentimento de pertença num todo), e assim por diante. Não seria este também o desejo de Marx?
Outro filósofo, o contratualista inglês Thomas Hobbes, em 1651, já dizia que “o homem é o lobo do homem”. No filme fica nítida a dificuldade de se estabelecer relações de igualdade e solidariedade, para que todos recebam o alimento e “quebrem” o mecanismo do sistema a que estão submetidos. Há todo um descaso para com aqueles que estão abaixo, ainda que os ocupantes dos andares superiores já estivessem estado lá.
A fé, a moral e os valores são colocados à prova no filme através de outras personagens com passagens simbólicas, e o desfecho com uma personagem infantil abre nossa mente para um olhar para as gerações futuras (pertencerão elas também à nossa lógica de exclusão ou serão capazes de reverter à lógica de “baixo para cima”?).
Neste sentido, acredito que o filme choque tanto pelo fato de retratar o interior do próprio homem, levando-nos a nos perguntar: será que eu não seria capaz de algo semelhante? Acrescento: será que já não o somos? Não seria a hora de [re]pensar algumas coisas?
Sendo uma profundidade de pensamento muito utópica ou não, a questão é que tanto o Jesus histórico, Marx, ou o filme – a meu ver – tentaram fazer valer a denuncia de um sistema que não beneficia a todos os seus integrantes; além de alertarem para a construção de princípios sólidos de fraternidade, igualdade e justiça para todos.
Ainda hoje o sonho utópico continua e acredito que sempre continuará, mas, diante deste realismo, me questiono: em qual andar do poço estou? Talvez, mesmo que tenhamos alimentos e mesa farta, que nossos corações sejam excludentes e orgulhosos, a verdade fundamental é que no fundo, todos nos encontramos nos andares inferiores do poço, quer nos demos conta ou não.
.
Carlos Alberto da Silva é graduado em Filosofia – PUCPR – Maringá. Graduando de Psicologia – UNIFAMMA. Pós-graduado em Aconselhamento (IATES) e Metodologias do Ensino Religioso (Eficaz)