Salomé, Schnitzler: Personagens De “Freud”
.
por Vinícius Romagnolli Rodrigues Gomes.
.
Os biógrafos de Freud dizem que ele era ótimo em construir e desfazer laços. Muitos foram seus interlocutores/amigos que depois de um tempo se tornaram alvo de críticas, ataques e rompimentos traumáticos: ambivalência? A própria psicanálise nos mostrou que ambas valem, ódio e amor andam juntos! Para citar apenas alguns desses relacionamentos, lembremos de Fliess, Breuer, Adler, Otto Rank e Jung. Na série “Freud”, podemos ter um vislumbre das relações complexas que o pai da psicanálise travou em sua jornada. A série dá atenção especial a figura dos médicos e mentores Theodor Meynert e Joseph Breuer, e traz personagens que levantam questionamentos, por exemplo: Fleur Salomé. Teria ela existido?
De acordo com o site The New York Times, Fleur Salomé é inspirada em Lou Andreas-Salomé (1861-1937), uma aprendiz, amiga e confidente de Freud, a única mulher a frequentar o círculo psicanalítico nos seus primórdios. A seu respeito, Freud teria dito: “sua beleza era igualada, senão superada, pela vivacidade do seu espírito, pela sua alegria de viver, sua inteligência e sua calorosa humanidade” (ROUDINESCO, 1998). Intelectualmente brilhante, Salomé era a única mulher a participar do círculo freudiano e teve relação estreita com figuras do quilate do poeta Rilke e do filósofo Nietzsche, tendo este último a pedido em casamento sem sucesso. É icônica a foto tirada em 1882 na qual Lou segura as rédeas de uma charrete puxada por Nietzsche e Paul Rée, que formavam um triangulo intelectual.
No entanto, mesmo que a intenção da série “Freud” fosse fazer menção a Lou, ela carece de rigor factual, afinal, Freud só conheceu Salomé em 1911 em Weimar no congresso internacional da IPA e não em sua juventude, portanto, as aproximações param por aí. Não deixa de ser interessante, entretanto, que se evoque a figura de uma mulher tão forte num contexto tão refratário a estas. Ademais, poucos sabem, mas Lou foi fundamental no desenvolvimento do conceito de pulsão de morte, amplamente abordado na série.
Outro personagem que aparece logo no primeiro episódio da série é o médico e romancista Arthur Schnitzler (1862-1931), que de fato trabalhou na mesma enfermaria psiquiátrica de Meynert. Freud admirava o autor de Breve Romance de Sonho (1926) pelo seu método de escrita associativa com crítica da moralidade, via no escritor um “explorador das profundezas” que trazia à tona com seu trabalho “as verdades do inconsciente. A obra de Schnitzler foi adaptada para o cinema por Stanley Kubrick com o filme De olhos bem fechados (1999) e cabe destacar que a atmosfera onírica da série “Freud” remete muito ao universo descrito nos romances e nessa adaptação fílmica de sua obra. A despeito da admiração por Schnitzler, Freud temeu encontrá-lo. É famosa a carta de 14 de maio de 1922, na qual Freud confessa a Schnitzler que o evitou por pensar que ele se tratava de seu duplo:
“Sempre que me deixo absorver profundamente por suas belas criações, parece-me encontrar, sob a superfície poética, as mesmas suposições antecipadas, os interesses e conclusões que reconheço como meus próprios. Ficou-me a impressão de que o senhor sabe por intuição […] tudo que tenho descoberto em outras pessoas por meio de laborioso trabalho.”
Admirado, porém evitado, seria Schnitzler um estranho demasiadamente familiar para Freud? Pontalis (2013) aponta para as muitas diferenças entre os dois, a saber: a monogamia de Freud em contraponto as aventuras amorosas do romancista, o pai humilhado de Freud ao ambicioso pai médico e inventor do laringoscópio de Schnitzler, a veneração pela arte clássica do primeiro em oposição a vanguarda da Secessão de Viena admirada pelo segundo. No entanto, Pontais lembra também das inúmeras convergências; ambos são judeus e ateus, foram vítimas do antissemitismo, escreveram muito e provocaram escândalo com suas obras. Ambos falam de angústia, morte e sexo, ambos perderam filhas precocemente, os dois praticaram hipnose no início de suas carreiras médicas e por fim, e talvez a maior aproximação, comungam de uma vontade obstinada de desbravar terras desconhecidas.
Por fim, cabe lembrar que ao tomar Schnitzler como seu duplo, Freud não o tomava como um alter ego ou um amigo semelhante, mas sim como uma figura ameaçadora, inquietante que seria melhor não (re)conhecer. Pontalis (2013) lembra ainda que Freud leu a obra de seu então discípulo Otto Rank intitulada O duplo, que mostra como em geral essa figura ganha contornos persecutórios; algo como uma figura maléfica que é portadora da loucura e da morte, temas caros à obra de ambos. Após enviar a carta envolta de medo e desejo, contradição própria do humano (e da qual nem o pai da psicanálise esteve imune), Freud convida finalmente Schnitzler para um jantar em sua casa, certamente um encontro inquietante e que me leva a pensar: o que falaram esses dois? Creio que seja legítimo supor que versaram sobre Eros e Tânatos, fantasia e realidade e por que não? Sobre personagens dignos de romances e o duplo que nos habita.
.
Vinicius R. R. Gomes é Psicanalista, Psicólogo e Historiador. Mestre e Doutorando em Psicologia. Professor universitário (PUC-PR). Fundador do Instituto Psicologia em Foco.