Slavoj Žižek, Lacan E Dostoiévski em concerto para piano
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por Ariane Andrade Fabreti
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Em seu longo e ácido monólogo, o protagonista de “Notas do Subsolo”, clássico de Dostoiévski (2001), protagonista este que se autoproclama um homem doente e desagradável, questiona a confiança quase cega na ciência da época, pois esta, sob a justificativa de desenvolvimento do bem-estar, tentaria dissecar o indivíduo a ponto de ─ e aí está o centro da crítica feita pelo autor russo ─ torná-lo completamente explicável somente pelas leis naturais e, assim, atenuar-lhe as contradições, os instintos perigosos, as ações impulsivas etc. “[…] então, dizeis, a ciência ensinará ao homem […] que ele nunca teve vontade, nem caprichos, e que não passa, em suma, de uma tecla de piano, de um pedal de órgão; o que realiza, […] não segundo sua vontade, mas conforme as leis da natureza” (DOSTOIÉVSKI, 2001, p. 36). A obra, publicada, originalmente, em 1864, traz uma questão assustadoramente atual: por que precisamos, ainda, conhecer a nós mesmos, se a ciência teve considerável avanço, em comparação ao século XIX? Afinal, para que a psicanálise e a investigação da subjetividade, esta mesma, já dissecada pela neurologia, pela bioquímica etc.? Seríamos, no fim, teclas e pedais de piano?
Lebre levantada há tempos pelo filósofo esloveno Slavoj Žižek, em sua obra “Como Ler Lacan” (2010). Tais questionamentos iriam ao encontro de um incômodo maior, indissociável do capitalismo e da modernidade tardios: a obrigatoriedade do gozo. Žižek, ao abordar o tema, remonta à outra obra de Dostoiévski, “Os Irmãos Karamazóv”, publicada, pela primeira vez, em 1879, por meio da célebre frase de um dos protagonistas: “se Deus não existe, tudo é permitido”, ao que o teórico esloveno devolve com o que considera uma máxima atual, “se Deus não existe, tudo é proibido” (ŽIŽEK, 2010, p. 114).
Pode soar estranho associar o gozo ao mal-estar, ainda que seja o gozo no sentido psicanalítico, como o próprio Žižek (2010, p. 99) esclarece em seu resgate de Jacques Lacan, de quem é um dos maiores estudiosos atuais: “uma intrusão violenta, que traz mais dor do que prazer”. Se o gozo foi um tabu por séculos, no cenário atual, ele tornou-se quase um dever por meio de vidas instagramáveis, por milhões de distrações oferecidas pelo consumo, bem como por promessas de “lapidação do eu” vendidas por livros e palestras de autoajuda. O gozo, agora, é filmado, fotografado, compartilhado, explicado, dissecado. Não há mais sinais dos interditos que eram obstáculos aos personagens dostoievskianos, como a tirania paterna que assombrava os Karamazóv, ou a estrita hierarquia social de “Notas do Subsolo”. Obstáculos estes que, na arte, eram como o espelho invertido de uma sociedade e de uma época. A narrativa científica contribui para explicar e, até mesmo, curar a ausência deste valor social atual, o “mais-gozar”. Tantos experimentos, tantos medicamentos, mas tantas crises depressivas e ansiosas (as quais substituíram as crises histéricas do passado, resultantes dos interditos já citados). Então, nesta roda-viva do gozo, seríamos teclas e pedais controlados pela natureza e curados/acalentados pela ciência.
Na recusa desta distopia da subjetividade, Žižek (2010) clama pelo retorno à Freud e, consequentemente, à Lacan, como forma não de reencontro hipócrita ou aliviador, mas sim, como um encontro radical com a verdade individual que, por mais aterradora que seja, deve ser conhecida pelo indivíduo, entretanto, sem qualquer tentativa de romantização e de narrativa redentora, “[…] mas levar o paciente a enfrentar as coordenadas e os impasses essenciais do seu desejo” (ŽIŽEK, 2010, p. 10).
Uma conclusão que os angustiados personagens de Dostoiévski nos anunciariam apenas no fim do concerto, quando as teclas do piano já estavam quase arrebentadas.
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Ariane Andrade Fabreti é Mestra em Literatura e Historicidade pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Graduada em Letras Português/Francês pela mesma instituição e graduada em Publicidade e Propaganda pela UniCesumar. Docente no curso de graduação presencial e EAD da Unifamma, na área de Comunicação.