Um olhar psicanalítico sobre o conto “O Corvo” de Edgar Allan Poe
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por Gabriela Françoso Eburnio
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Edgar Allan Poe (1809-1849) foi um dos principais precursores da literatura moderna que envolveu terror e suspense de seu tempo. Sua vida nos Estados Unidos fora atravessada pelo sofrimento, seu semblante que muitos já entenderam como o espelho de uma loucura, consegue nos transmitir o mesmo desamparo, angústia e solidão tão significativas e simbólicas em suas obras. Poe se tornou órfão antes dos três anos, pois quando completou um ano de idade, foi abandonado pelo pai e um ano depois sua mãe faleceu de tuberculose. O escritor chegou a ser adotado por um casal, do qual só encontrou amparo na figura materna. Durante sua vida adulta, Poe possuiu um grande amor, Virgínia, que falecera precocemente. É nesse momento que podemos ver que ao lermos Poe, significa reconhecê-lo. Em inúmeras obras, o autor denuncia os conflitos que perpassam a condição humana envolvendo seus próprios conteúdos empáficos, mas principalmente o desejo por sua amada. Quando nos deparamos com as escrituras de Poe, conseguimos notar muitos personagens femininos que ganham destaques e características semelhantes, como fragilidade e inacessibilidade. Lenore, a personagem feminina que ganha atenção aos olhos de Poe neste conto, mostra o quanto fora inspirada na figura de Virgínia, o grande amor de sua vida, que morrera aos 24 anos agonizando sua morte, mesma idade que falecera a mãe biológica do autor. Poe morreu em intenso sofrimento por um período de quatro dias, um fato que acabou intensificando ainda mais o seu mistério (Gonçalves, 2017).
Ao olharmos para a trajetória de Poe nos deparamos com uma certa estranheza obscura diante de suas experiências e escritas. Geralmente, dentro do senso comum, podemos entender como estranho, aquilo que causa horror e medo, tendo oscilações para cada sujeito o seu sentido, no entanto, para Freud (1919/1996), a consideração de estranho está atrelada aos sentimentos de ambivalência e a duplicidade, ou seja, consideramos estranho aquilo que já temos um certo conhecimento estando atrelada ao assustador, justamente por nos remeter ao que é velho e familiar.
Em outro momento, o autor apresenta o fato de que os povos primitivos acreditavam que existe um certo poder entorno da morte, unido a onipotência de pensamentos e poderes secretos, todavia, na contemporaneidade essas crenças teriam sido superadas, mas ainda assim se fazem presentes, prontas, esperando uma certa confirmação. Em certo ponto, podemos enxergar essa ideia primitiva no conto “O Corvo” de Poe, quando nos apresenta o pássaro como aquele carrega uma mensagem de morte. Segundo Freud (1919/1996), os complexos infantis têm importância significativa para aquilo que é infamiliar, pois na infância a questão da realidade material não surge, o seu lugar é tomado pela realidade psíquica. Então, é constatado que uma experiência estranha se dá pela situação em que esse complexo infantil é revivido por meio da crença primitiva, ocorre uma volta do que fora reprimido, que tecnicamente havia sido superada. O autor também entende que o estranho se torna mais fértil na literatura do que na vida real, pois o escritor tem a liberdade de escolher o mundo do qual deseja representar, podendo assim, aproximar-se de nossa realidade ou afastar-se o quanto quiser, portanto, podemos perceber que muito daquilo que não é considerado estranho na ficção, seria se ocorresse na vida real, e que existem mais possibilidades na ficção de criar efeitos estranhos, do que na realidade.
O conto “O Corvo” de Poe foi publicado no Brasil em 1883 com a tradução de Machado de Assis e recentemente republicado pela editora DarkSide Books que contempla importantes fatos para além dos contos presentes na edição. Essa obra carregada de mistério nos apresenta um cenário um tanto comum, no qual o personagem principal encontra-se lendo, entretanto, em estado sonolento, e ouve um barulho na parte de fora de sua casa, um visitante que quer atravessar seus portais. De início, Poe descreve uma certa ansiedade e inquietude do personagem de abrir a porta e descobrir o que está fora de sua casa. Vale ressaltar que o conto retrata uma dor imensa pela morte de sua amada Lenore, que apesar de tentar se distanciar desses pensamentos, o personagem se deleita em sofrimento, quando diz: “Só tu, palavra única e dileta, Lenora, tu, como um suspiro escasso, da minha triste boca sais.” O protagonista se apropria de uma coragem e abre a porta mas, não vê nada além de trevas, expõe uma angústia por não ver nada e em seguida, retorna ao cômodo onde se encontrava, mas novamente ouve alguém batendo na tentativa de entrar, expressa medo e ao abrir novamente a janela, se depara com a chegada de um corvo que pousa sobre seus umbrais. A partir desse momento, ele estabelece um diálogo com o pássaro, e questiona o seu nome, que responde: “Nunca mais”.
Com um certo incômodo ao ver o animal em total silêncio, o que mais o perturbara era como ele se nominava, então, acomodou-se com a ideia de que o corvo iria embora no dia seguinte, e novamente o pássaro repete: “Nunca mais”. Em seguida, entendo que o personagem demonstra uma certa negação nesta situação, pois ignora o fato do pássaro estar trazendo uma lembrança do passado e diz: “Certamente, digo eu, essa é toda a ciência que ele trouxe da convivência de algum mestre infeliz e acabrunhado, que o implacável destino há castigado.” Em profundo devaneio, o protagonista continua a se perder em seus pensamentos, que vão em direção à Lenore e implora aos céus para que livrasse sua amada da dor da morte ou se existia um balsamo para que pudesse ajudar em seu sofrimento, e novamente o corvo responde: “nunca mais”. O personagem, com raiva, verbaliza que não quer mais a ave em sua residência, e a manda embora. No entanto, o corvo não vai, e o texto se conclui com o trecho: “No chão espraia a triste sombra; e, fora daquelas linhas funerais que flutuam no chão, a minha alma que chora não sai mais, nunca, nunca mais!”.
Após a exposição de alguns trechos do conto, podemos notar a partir de Freud (2014) que os sonhos são realizações disfarçadas de desejos reprimidos, os quais habitam no Inconsciente, de forma latente e se tornam conteúdos manifestos a partir do momento em que passam pela barreira da repressão e vem à consciência de forma distorcida, através do devaneio. O sonho tem importante função dentro do tratamento psicanalítico, além dele ser guardião do sono, é também um contato mais próximo que podemos ter com os desejos reprimidos, visto que, a interpretação dos conteúdos oníricos tem como objetivo encontrar esse desejo inconsciente. Esses desejos que muitas vezes gostaríamos de esconder, podem ter natureza que envergonhem o sonhador, pois, o inconsciente sendo regido pelo princípio do prazer, pode manifestar o ato sexual ou situações que não são bem vistas socialmente, entretanto, sem dúvida, são os mais importantes e é justamente nesse aspecto que podemos perceber no conto uma fantasia do autor, pois existe uma insatisfação devido ao fato de não ter mais Virgínia em sua vida.
Como foi considerado na biografia de Poe, ele se tornou órfão antes dos três anos, foi adotado e acolhido pela mãe adotiva, portanto, é possível notar que o autor coloca no contexto do personagem uma falta melancólica de sua amada, que a substitui de forma inconsciente pela falta da mãe que já estava morta, enquanto objeto de desejo. Assim, o conto não apenas expõe a falta de sua amada Lenore através de um sonho, sendo esta a representante de Virgínia, mas também escancara a falta do autor em relação a sua mãe, pois Freud entende que o que motiva a fantasia é uma insatisfação da realidade, mas ela em si é a realização do que não fora possível, uma correção da realidade insatisfatória da fantasia edipiana.
Ao relacionarmos a interpretação de Freud sobre o sonho de Leonardo da Vinci (1910/1996) que retrata sua infância no momento de sua amamentação, no ato de que um abutre substitui o seio materno, e coloca sua cauda na boca do bebê com o conto presente, podemos ver semelhantes manifestações de desejos, onde Freud nos traz o voo do abutre e o interesse do pintor em relação ao voo de aves, enquanto interpretação de um sonho de Leonardo, e cita que a psicanálise entende o ato de voar ou ser um pássaro como uma máscara para um outro desejo e que existem palavras ou coisas que podem nos levar a reconhecer esse desejo, assim, nos sonhos o desejo de voar pode representar a vontade de realizar o ato sexual. Diante disso, o corvo consequentemente representa dois papéis, que são o desejo sexual por Lenore e a confirmação de que o personagem nunca mais terá a amada, por conta de sua morte.
Outra associação que podemos fazer para contribuir com a interpretação, está presente no texto “Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen (1907/1996)”, visto que Freud analisa o conto de Wilhelm Jensen, onde é exposto a história de Norbert Honald, arqueólogo, e se interessa pela estátua de mármore que representa uma mulher andando e encanta-se. No momento em que Honald percebe o relevo da estátua, nos deparamos com conteúdos inconscientes do personagem que estão reprimidos, porque foi como se esse contato com a obra de arte tivesse suscitado seus desejos. No conto de Poe, percebe-se que no momento em que o corvo adentra a janela do personagem e verbaliza que seu nome é “Nunca mais”, também começa a ocorrer essa situação conflituosa. Esses conteúdos que entram em instabilidade são significativos porque estão atreladas a sentimentos, assim a ideia só é reprimida no inconsciente pelo falo de estar em conjunto com afetos, no entanto, só as representações são reprimidas. Por fim, o personagem que Põe nos traz, começa a lidar no decorrer do conto com seus desejos conflituosos e suas angústias, até perceber que viverá com o fantasma da morte de sua amada, para sempre.
Considero que a literatura é uma importante aliada na formação humana, mas para além disso, Poe nos apresenta de forma crua a realidade de sua dor, escancara sem hesitar que o sofrimento pela morte é algo imensurável e o quanto isso o atravessou durante sua existência. Encarar as obras de Poe é como se pudéssemos conhecer o mais íntimo de seu inconsciente e é justamente isso que faz dele um dos autores mais espetaculares da história da literatura mundial.
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Referências
FREUD, S. Cinco Lições de Psicanálise, Leonardo da Vinci e outros trabalhos (1910). Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, S. Uma neurose Infantil e outros trabalhos (1917-1918/1919). Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, S. Conferências Introdutórias à Psicanálise. 1ª.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
FREUD, S. “Gradiva” de Jensen e outros trabalhos (1907). Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, S. O Ego, e o Id e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
POE, E. A. Edgar Allan Poe: medo clássico: coletânea inédita de contos do autor. Edgar Allan Poe/tradução de Márcia Heloisa Amarante Gonçalves; Ilustrações de Ramon Rodrigues, Rio de Janeiro: DarkSide Books, 2017.
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Gabriela Françoso Eburnio
Acadêmica do 4º ano do curso de Psicologia – Unifamma
Idealizadora do @libertepsi