Instituto Psicologia em Foco entrevista o professor Dr. Paulo José da Costa (UEM) que acaba de lançar seu novo livro “Mitos gregos e psicanálise: interfaces” pela Editora CRV.
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1 – Qual a importância de um livro que aborda a interface entre psicanálise e mitologia grega em pleno século XXI?
– A importância está na riqueza simbólica presente na mitologia grega, ao expressar aspectos profundamente humanos que transcendem a especificidade do povo que a criou, ultrapassando os limites históricos e temporais. Portanto, não diz respeito apenas à Antiguidade, mas à humanidade do século XXI. Tem uma frase da Eva Maria Migliavacca, em um artigo de 1998, que afirma: “aquilo que o mito conta é mito. Mas aquilo que o mito ensina não é mito. É realidade humana”. E por tal condição, por serem atuais, por expressar a realidade humana mais profunda, interessa à Psicanálise que busca conhecer as entranhas da alma humana. Assim, em nosso livro, quando propomos discussões psicanalíticas de elementos míticos gregos, estamos tomando-os como um modelo que nos permite pensar questões inerentes à contemporaneidade, que emergem em nossos consultórios. Esse exercício de buscar interfaces, partindo do pressuposto da existência de elementos universais e singulares na narrativa mítica, gera possibilidades associativas. Tais possibilidades, segundo uma concepção bioniana, favorece o aprender com esta experiência, que torna factível a compreensão de aspectos conceituais psicanalíticos de modo muito mais atrelado à prática clínica, por desencadear processos mentais próprios do pensamento clínico.
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2 – A psicanálise desde sua fundação com Freud tem uma relação muito estreita com a mitologia, em especial com a mitologia grega. Como poderíamos relacionar psicanálise com mitologias mais próximas da nossa cultura brasileira? É possível fazer análises dos mitos tupi-guarani?
– É possível relacionarmos a psicanálise com todas as mitologias das diferentes culturas, inclusive com as mais próximas, existentes em nosso país. Sendo assim, é pertinente considerarmos o conjunto de mitos presentes nas diferentes etnias indígenas em nosso meio, como importantes expressões culturais desses povos e, portanto, passíveis de análises. Existem alguns trabalhos publicados no Brasil, que os analisam, entre os quais posso citar o livro de David Azoubel Neto, intitulado “Mito e psicanálise: estudos psicanalíticos sobre formas primitivas de pensamento”, publicado em 1993 pela editora Papirus. Mesmo que no título apareça o termo mito de modo genérico, efetivamente no corpo do livro, em todos os capítulos, são discutidos aspectos míticos indígenas brasileiros relacionados com conceitos fundamentais psicanalíticos. Embora se possa questionar alguns pontos quanto à forma como são abordados pelo autor, considerando os estudos atuais sobre mitos, esse livro continua sendo um referência importante nessa área. Retomando como poderíamos relacionar psicanálise com essas mitologias muito próximas de nós, existem diversos recursos metodológicos que auxiliam nesse processo, desde o próprio método psicanalítico, stricto sensu, até outros meios que, embora oriundos de outros campos do conhecimento, foram adaptados para se coadunar com o pensamento psicanalítico. Mas isso seria uma outra longa conversa.
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3 – Freud concebia o aparelho psíquico como estrutura simbólica e metafórica, sendo a arte uma das formas possíveis de nos aproximarmos do inconsciente. Como o senhor vê a interface entre psicanálise e mitologia presente na clínica psicanalítica?
– O mito é uma produção humana, assim como a arte e outras formas de expressão cultural. E como tal, o mito está profundamente entrelaçado com a arte. Tomando como exemplo a mitologia grega, vemos que os relatos míticos transformaram-se em poesia, inspiraram criações musicais, expressaram-se nas pinturas sofisticadas dos vasos e outros utensílios, se corporificaram na excelência da escultura grega e estão na origem e na pujança do teatro grego nas suas versões trágica e cômica. Então, certamente que podemos pensar nos mitos também como uma das formas possíveis de nos aproximarmos das manifestações inconscientes. Penso que a interface entre psicanálise e mitologia que se presentifica na clínica psicanalítica, se manifesta de diferentes modos. Somos seres culturais e, como tais, o mito faz parte de nossa construção como seres humanos, estejamos cônscios disso ou não. Certamente que isso se expressa na clínica psicanalítica, seja na mente do analista, seja na linguagem do paciente, mesmo que indiretamente, mesmo que não se perceba, pois estamos falando de elementos universais que dialogam com aqueles singulares e, por transformações semelhantes ao que ocorre no sonho, constituem-se em algo que é peculiar ao sujeito que se expressa no contexto clínico de uma análise ou psicoterapia psicanalítica. Veja que aqui estou me referindo àquilo que expressamos de nós mesmos, da nossa singularidade, e que, por mais vinculado a fatos vivenciados na nossa história, no nosso cotidiano, não é possível falar disso sem que tal enunciação se construa a partir do caldo cultural em que estamos imersos. Não era à toa a recomendação freudiana de que os analistas estudassem mitologia, como um dos componentes importantes à formação.
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4 – Na contemporaneidade as questões de gênero têm se ampliado fortemente. Como a leitura da mitologia em sua interface com a psicanálise pode contribuir para essas discussões?
– Os mitos, por apresentarem componentes universais, podem nos auxiliar e contribuir nas muitas discussões contemporâneas, entre elas as questões de gênero, principalmente tendo a psicanálise como interface. Mas essa contribuição tem que ser construída, discutida, confrontada e se colocar em constante reconstrução. E certos cuidados são fundamentais, entre eles não se tomar um mito oriundo de um determinado contexto cultural e histórico, analisando-o a partir de categorias, de critérios, de pontos de vistas contemporâneos. Se tomarmos para pensar aqui a partir de um mito grego, precisamos levar em consideração de que naquele contexto não existiam as questões de gênero que se fazem presentes em nosso tempo. Certamente que as pessoas naquela época tinham posições e papéis definidos social e culturalmente, principalmente com relação ao masculino, ao feminino, ao homoerotismo, que geravam problemáticas, por vezes embates, que embasaram avanços e retrocessos posteriores. Contudo, não se pode tomar uma questão de determinada época e contexto, como se fosse atual, por mais que hajam elementos semelhantes, porque a visão de mundo, as concepções que regem a vida, são muito diferentes. O passado, seja histórico, seja mítico, sempre pode nos ajudar a pensar o presente e o futuro, mas não devemos fazer o caminho inverso sem estarmos abertos ao que é próprio de cada época. Retomando sobre como pode contribuir, ressalto que não há algo pronto, pelas diferenças que nos separam, mas muito a ser desenvolvido a esse respeito, com um olhar atento às particularidades culturais, temporais, históricas, sócias.