Fellini e a recriação da (própria) vida
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por Alyson Santos
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A criação de um filme pode ser a criação de um desejo. Seja uma ideia que surge ao amanhecer, seja a materialização de um sonho. É isso o que se pensa, quando se fala em Federico Fellini. Um dos diretores mais autobiográficos da história do cinema. Da Itália, o que mais se autorretrata. Fellini é Moraldo, em Boas-Vidas (1953), saindo de Rimini, onde nasceu. É Marcello, de A doce Vida (1960), tentando ser jornalista em Roma. É Guido, de Oito e Meio (1963), como um cineasta atravessando uma crise de criatividade. É o próprio revivendo a sua chegada na capital italiana, em Roma (1972). Se uma obra carrega parte da vida de um autor, em Fellini ela transborda.
Dois filmes da carreira do italiano formam um perfeito casal: A doce vida (1960) e Oito e meio (1963). A diferença de três anos data a cronologia do caso, porém as suas semelhanças mostram um tempo desmedido. É Marcello, jovem jornalista em formação, se transfigurando em Guido, o já cineasta. No filme de sessenta e três temos a obra que mais remete a vida de seu criador, embora seja no filme de sessenta que temos a coragem de Fellini vindo à tona, sem colocar limites na sua passagem do neorrealismo para uma nova estética contemporânea de suas fantasias pessoais.
E essa passagem excede a autobiografia, encontrando-se com a psicanálise, o peso da culpa cristã e a fissura de tudo o que envolve o sexo. Em ambos os filmes, encontramos tais características. Aliás, as semelhanças são muitas: a crise intelectual de seus heróis que, como de costume, sempre vividas por homens em decadência, principalmente pela instabilidade das suas profissões. Além disso, Marcello e Guido também fazem o tipo conquistador, com a infidelidade também se instalando sobre os dois. Em Fellini só os homens traem. A imoralidade feminina está mais ligada a prostituição. E talvez somente em “A doce vida” e “Oito e meio” a sexualidade feminina seja enfatizada, pois Emma e Madalena, esta amante e aquela namorada, demonstram interesse pelo sexo. Assim como Carla, amante de Guido.
A religião é outro tema sempre muito presente. Nas contas, Fellini é o que mais alfinetou essa temática em toda a sua filmografia, por traze-la sempre de forma crítica ou irrisória. Por em “Oito e meio” termos a questão religiosa pautada como forma educacional, remetemos que a educação de Fellini teve muito dessa influência, ainda que, como confessado pelo próprio cineasta, tenha tido uma vida cheia de amantes e sua primeira experiência sexual com uma prostituta. Por isso, o sagrado e o profano foram entrelaçados em muitas de suas obras. Já em A doce vida, algumas crianças dizem ter visto a Virgem Maria, o que levou a uma multidão acreditar na veracidade do caso.
Mas, se tem uma marca temática do diretor, essa marca advém dos seus sonhos. Nem De Sica, nem Rosselini, muito menos Visconti e Antonioni, diretores italianos tão consagrados quanto Frederico Fellini, trouxeram os sonhos para suas obras. Por isso, ainda que muito criticado na época, por optar pelos caminhos de Freud, do cristianismo e do “sexualismo”, foi por meio da sua concepção de que os sonhos são a realidade do homem, e de que as fantasias e obsessões não são apenas a realidade, mas também materiais para a construção de um filme, que fez Fellini um artista singular. Até hoje, objeto de estudo nas mais diversas áreas, principalmente na psicanálise. Em Oito e meio, com os sonhos eróticos e os que também remetem à infância, temos o seu filme que melhor desenha essa temática em sua filmografia. Basta lembrar que no filme de 1963, há um pesadelo inicial onde o herói se vê em um engarrafamento e depois é jogado das alturas.
Da técnica felliniana advém o cinema puro e o pensamento imagético sobre qualquer outra coisa verbalizada. A construção da imagem esteve sempre preponderante sobre o que se fala. Não que seus diálogos não sejam cuidadosamente construídos, mas os filmes aqui comentados mostram a liberdade que o artista foi tomando em expandir a comunicabilidade que cada detalhe em cena faz emergir. O movimento, para ele, está além do mover da câmera. A direção de atores e figurinistas ditam um ritmo que nunca se quer cansado. Em vários momentos desses dois longas, os atores se movem e vão criando as alternâncias de seus distanciamentos em relação a câmera. Quem estava em terceiro, quarto plano, logo aparece em primeiro. E vice-versa. É nítido como, para Fellini, o que está distante da câmera também se mostra como importante ou, no mínimo, contribuinte para a construção da imagem, do plano, do movimento.
Em ambas as obras aqui selecionadas, há uma contrapartida, algo até mesmo irônico: da autobiografia que nelas se fazem presentes, temos protagonistas em crises com relação a profissão, como já mencionado. Homens instáveis que estão perdendo o domínio de suas faculdades criativas. Algo que se confunde entre a obra e o autor, como Fellini relata. Entretanto, é mais do que claro que o italiano sabe o que está fazendo. Pode ser que do seu caos venha a perfeição. E de que ele tenha alcançado sua identidade criativa, quando estava no abissal de sua crise. Pode. Mas, mais do que isso, é certo que por onde esse cineasta tenha caminhado, se pelo neorrealismo ou pelo dinamismo de sua própria vivência, pela exuberância de seus longas contemporâneos, Frederico Fellini acertou em suas ousadias e fez, a partir de sua coragem, a história do cinema ganhar um momento único e de estilo refinado com seus filmes.
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Alyson Santos é professor, mestre em Letras pela Universidade estadual de Maringá, pós-graduado em História do Cinema, pela Academia internacional de cinema de São Paulo, coordenador e formador no projeto Atravessando a Tela.